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A surpresa manifestada por Commynes era demasiado absoluta para não ser sincera.

A sua mulher? Nunca ouvi dizer que fosse casado! Tanto quanto sei, recusou diversos partidos, por vezes fantásticos, mas ele não consagraria muito tempo à infeliz que casasse com ele...

Por que razão dizeis infeliz?

Não é um destino muito agradável viver isolada num castelo borgonhês, ou aumentar o círculo de dames afastadas dos maridos que rodeiam, em Gand, em Bruges, em Bruxelas, ou em Lille, a duquesa Marguerite e a sua nora Marie. A época não é propícia à felicidade de um casal! O mesmo acontece comigo: há dois anos e meio, ocasião em que voltei a casar-me, que não vejo dame Hélène, a minha bela mulher. Quando não está junto da Rainha Carlota, que vive em Amboise com os filhos, está em Argenton, terra que veio para a minha posse pelo casamento e onde ela gosta de estar.

E... ela não tem saudades vossas? lançou Fiora com uma ligeira insolência.

Se tem, é demasiado inteligente e educada para as exprimir.

Então, mudemos a proposição, por favor: não tendes saudades dela?

Commynes, já com todo o seu bom humor reencontrado, desatou a rir:

Estou a ver que é preciso agradar-vos, donna Fiora! Poderia dizer-vos que o nosso sire não me dá o tempo ou a oportunidade, o que seria verdade. No entanto, por vezes, quando o campo cheira bem e o céu está cheio de estrelas, lamento a sua ausência, porque é uma mulher doce, bela e fresca... tão loura quanto vós sois morena... mas de carácter bastante mais tranquilo, se me permitis esta pequena maldade.

Começava a fazer-se tarde. Commynes, que acabara de liquidar uma salada de morangos e amoras, fazendo escorregar os frutos com três dedos de aguardente de ameixa, pediu licença aos seus novos amigos e retirou-se para o quarto que lhe tinham preparado. Fiora escutou o som dos seus passos a diminuírem na longa galeria dominando o pátio central que dava acesso aos diversos apartamentos e depois, certa de que o senhor de Argenton já tinha entrado no seu quarto, regressou para junto de Demétrios, que, à janela, escutava os sinos da catedral próxima tocando a recolher, depois de ter apagado as velas que iluminavam a mesa. Mas a noite estava suficientemente clara para poderem dispensar qualquer tipo de iluminação. Fiora instalou-se junto do grego e perguntou:

Na verdade, não sei o que pensar deste homem. Desorienta-me. Parece franco, leal, honesto e deve ser fácil tornarmo-nos amigos dele, mas...

Não vais, agora, condená-lo por ter abandonado o Temerário pelo Rei Luís?

Não deveríamos fazê-lo? Em todas as línguas do mundo ele é um traidor!

Na minha não é, porque a culpa não é de sire Commynes, antes desse príncipe desmedido, louco de orgulho e inacessível a todos os sentimentos humanos, que não soube conservar um tal servidor. Porque, digo-te, este Commynes é um grande servidor e aproximou-se, com toda a naturalidade, de uma inteligência que se assemelha à sua. Ele tem o estofo de um homem de Estado e Luís XI não se enganou... Ele sabe que temos o que merecemos. O Temerário não sabe e nunca saberá...

No entanto... foi amigo de messire de Selongey murmurou Fiora com amargura.

Porque são parecidos: são homens de guerra, senhores feudais, que os de Florença temem e desprezam um pouco porque lhes compram os serviços. O teu Philippe é o reflexo que o Temerário vê quando se olha ao espelho.

O meu Philippe não é assim!

No entanto, o teu coração está cheio de angústia, agora que o sabes a caminho do cadafalso. Não digas que não. Eu leio em ti como num livro, sabes bem.

Tu também lês o futuro. Ele vai morrer?

Não sei. Para te responder, seria preciso que estivesse ao pé dele...

Mas estás ao pé de mim! Que vês?

Uma longa estrada, sons de batalha... sangue e lágrimas. Escutar-me-ás, Fiora, se te ordenar que regresses a Paris, para junto de Léonarde e dos Nardi? Os combates que se preparam são demasiado violentos para uma mulher. Amo-te o suficiente para desejar poupar-te a eles.

Eu não quero ser poupada disse ela com uma violência súbita. Odeio mais o Temerário hoje do que odiava ontem. E se Philippe morrer por causa dele...

O som de passos na rua cortou-lhe a palavra. A jovem reconheceu a silhueta vestida de trapos de Esteban, que regressava ao albergue após uma tarde passada, sem dúvida numa taberna qualquer com os soldados que defendiam a cidade. Depois de ter deixado Paris, o castelhano aspirava o odor violento da guerra com todos os poros da sua pele e não perdia uma ocasião para se aproximar das tropas, para partilhar, nem que fosse por um instante, uma vida para a qual nascera. Demétrios não ignorava nada dessa atracção. Só a ligação estreita que havia entre ambos fazia com que ele não se alistasse. Mas, resistiria ele ainda muito tempo num país onde havia mais homens armados do que civis?

O grego chamou-o do alto da janela e ordenou-lhe que subisse.

Eu teria subido, de qualquer maneira disse Esteban ao entrar no quarto porque tenho que dizer uma coisa a donna Fiora.

A mim?

Aos dois será mais justo. O monge espanhol!

Sim?

Está aqui. Chegou montado numa mula, pouco antes de fecharem as portas. Está alojado em casa do arcipreste da catedral.

Que monge espanhol? perguntou Demétrios, que caía das nuvens. O...?,

Sim disse o castelhano com uma careta feroz. Esse mesmo. Donna Fiora viu-o na missa da Assunção, na catedral de Notre-Dame de Paris, eu vi-o depois e fiz falar um dos monges em casa de quem ele estava alojado. Parece que veio para falar com o Rei.

Demétrios permaneceu calado por alguns instantes, sem dúvida para se habituar à ideia de ver surgir de novo Inácio Ortega na sua vida:

Bem suspirou ele não nos faltava mais nada! Esteban, meu rapaz, sinto-me desolado, mas vais ter que vigiar de perto esse fanfarrão...

Tudo bem disse o rapaz com desenvoltura. Estarei na catedral mal comecem as missas! Uma a mais, uma a menos...

CAPÍTULO VII

LUÍS, REI DE FRANÇA PELA GRAÇA DE DEUS.

Três dias mais tarde, o Rei recebia a sua corte no castelo de Senlis. Uma corte estranha, onde as damas estavam ausentes, com excepção de uma e que mais parecia um conselho de guerra do que a reunião habitual de um soberano, que deseja escutar as queixas do seu povo. Havia mais armaduras do que gibões e casacas justas. Luís XI era quase uma excepção, metido num traje verde-escuro, comprido, aberto na frente para deixar passar as pernas magras metidas em calções negros e os pés calçados com sapatos de bico em couro, que mantinha cruzados sobre o chapéu, cuja ponta fazia uma linha paralela divertida com o seu longo nariz, as medalhas brilhavam, polidas. Assim vestido, contrastava gritantemente com as cotas de seda multicoloridas, as correntes de ouro do seu séquito e os trajes soberbos da Guarda Escocesa. Alguns dos seus amigos estavam junto dele: o velho senhor de Bouchage e o senhor de Lude, que o Rei cognominara de Jean dês Habilités e Tanneguy du Chastel, mas nenhum deles era chamado aos seus conselhos. Apenas Commynes, o mais jovem, no entanto, podia, em Senlis gabar-se desse título junto de um soberano do qual se dizia que ”o seu cavalo transportava todo o seu Conselho”. Estava de pé junto dele, prestes a atender ao menor sinal... Um grande galgo branco, Cher Ami, o favorito, estava deitado aos pés do seu dono, que se sentava sob um pálio com flores-de-lis.

1 Caro amigo.

A única excepção feminina naquela assembleia de homens, porque fora convidada imperiosamente, Fiora, vestida de negro, os cabelos severamente entrançados e cobertos por uma coifa baixa de veludo cujos panos não deixavam passar uma única mecha, estava de pé junto de Demétrios, cuja alta silhueta a escondia em parte.

Raramente se sentira tão febril, porque andara durante três dias às voltas no seu quarto do albergue sem conseguir entender fosse o que fosse, atormentada pelo pensamento de que, a qualquer momento, Philippe podia ser conduzido ao suplício e agarrando-se à frágil esperança das últimas palavras do Rei: ”Falaremos disto noutra oportunidade...” Esperara que Demétrios fosse à presença do soberano e que o pudesse acompanhar, o que não acontecera.