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Sire, este homem queria matar o rei!

Sem dizer nada, este pegou na arma e examinou-a, levando o seu tempo, aparentemente pouco apressado em chamar o seu cão que continuava a rosnar, o que, aliás, não parecia inquietar frei Inácio. Se o seu rosto não passava de uma máscara de furor impotente, devia-se unicamente ao facto de ter reconhecido Fiora:

A florentina! escarrou ele. A feiticeira danada! Está aqui e tenta imputar-me as suas intenções criminosas!... Era ela, era ela que tinha o punhal, era ela que...

Que se preparava para nos matar? disse calmamente Luís XI. Antes de tudo, sou amigo da lógica e das probabilidades. Se a ideia de donna Fiora era magoar-nos, teve todas as oportunidades no outro dia, na abadia da Vitória. Estivemos muito tempo juntos, a conversar. O que gostaríamos de saber, em vez disso, é em que circunstâncias conheceu ela este estranho servidor de Deus.

De joelho em terra, Fiora ergueu para o Rei os seus grandes olhos cinzentos, nos quais nenhuma nuvem perturbava a limpidez:

Se o Rei quiser ouvir-me, dir-lhe-ei tudo.

E nós ouviremos com prazer. Já em criança gostávamos muito de histórias de bandidos. Messire de Commynes, conduzi donna Fiora ao nosso oratório, onde a encontraremos daqui a pouco... E agora, Cher Ami, vai-te deitar. Serviste-nos bem e terás a tua recompensa. Capitão Kennedy!

O oficial que comandava a Guarda Escocesa colocou-se junto do monge, que, ainda por terra, não ousava levantar-se com medo das presas do galgo, que, se bem que obedecendo, continuava a rosnar:

Às ordens do Rei. Que ordena ele?

Não agrada a Deus que manchemos as nossas mãos com o sangue deste assassino. Portanto, queres morrer por Balue, pobre louco?

Nem sequer o conheço! É pela minha Rainha, Isabel de Castela, que estou pronto a morrer. Os teus soldados pilham e martirizam as terras que são suas...

Há muito tempo que não o são, e por casamento. Sem contar que a Catalunha livre nunca lhe pertenceu. Com Aragão é que temos assuntos pendentes. Seria bom que na terra dos irmãos do grande São Domingos se aprendesse um pouco de história e de geografia! Ha? Mas não acredito. A verdade é que tu és um enviado do Papa Sisto. Ele é aliado do Temerário e nada o alegraria tanto como a nossa morte. Que obteria ele se tu tivesses sucesso?

Que sei eu? Tu és o Anticristo, o apoiante de Satanás! Mais cedo ou mais tarde receberás a punição pelos teus crimes, mais tarde ou mais cedo saberás o que custa a maldição. Por teres ousado pousar a tua mão em mim, serás excomungado, serás...

E por que não será o meu reino, também, interdito? ironizou Luís XI. Meu Deus, como este monge é fatigante! Kennedy, meu amigo, tirai-o daqui antes que a cólera nos faça fazer algo...

E que quereis que se faça com ele?

Mandai-o conduzir ao nosso castelo de Loches com uma boa escolta. Lá, se não me engano, há uma cela vazia ao lado da de Jean Balue. Juntai-os. Travarão conhecimento, porque, aparentemente, este louco veio implorar o perdão de um homem que nunca tinha visto. São capazes de se entender.

Espumando de raiva e cólera, escarrando veneno e maldições, frei Inácio foi levado por quatro sólidos escoceses que o transportaram no ar, em vez de o enquadrarem. Os pés do monge escouceavam no ar de forma grotesca... Cher Ami, acalmado, voltou a deitar-se aos pés do Rei. Commynes segurou Fiora pelos braços:

Vinde disse ele. Creio que não há mais nada para ver.

A jovem seguiu-o sem se fazer rogada. Os uivos do seu inimigo ecoavam-lhe no coração como cantos de alegria... Livrara-se daquele monge, que parecia ligado à sua vida como uma maldição, recordação viva do furor cego que a precipitara no inferno! Fiora não sabia onde ficava aquele castelo de Loches, mas, fosse onde fosse, punha entre ela e o seu inimigo a espessura das suas muralhas, as suas sólidas portas, os seus calabouços profundos e as correntes nas celas...

Aquele homem deve ser louco comentou Commynes. Atacar o nosso sire no coração do seu reino, num dos seus castelos, no meio dos seus guardas, servidores e amigos? Como esperava ele escapar se tivesse conseguido?

Facilmente, imagino. Ele pensa que é a espada a ira de Deus. Em cada príncipe secular vê um tirano. Contava com a alegria reconhecedora dos escravos libertados...

Bem, se é isto o que o Papa arranja como embaixador! Pensava que era um homem hábil?

Provavelmente, é mais do que pensais! Reflecti: se o atentado tivesse tido sucesso, Sisto IV ter-se-ia desembaraçado do mais poderoso aliado de Florença e, portanto, de um inimigo perigoso. E como frei Inácio falhou, desembaraçou-se de um homem incómodo, ao qual não sabia que fazer. Estes fanáticos são bons ouso dizer quando há necessidade deles.

Commynes olhou para Fiora com um espanto sincero e desatou a rir:

Eu, que me achava um político refinado, acabo de receber uma grande lição... Ah! Senhor Olivier, deixai-nos entrar. Esta jovem vai esperar o Rei no seu oratório.

A última frase fora dirigida a um homem que saía dos alojamentos reais segurando debaixo do braço um pequeno cofre. Vestido de negro, os cabelos castanhos cortados curtos, o rosto estreito de uma estátua de madeira, tinha lábios finos e uns olhos que possuíam a imobilidade e a cor indefinível de um pântano. O homem inclinou-se um tudo nada demais e Fiora, que não gostara da sua figura, achou-o obsequioso. A voz, ainda por cima, era um pouco doce de mais:

O senhor príncipe de Talmont não precisa que um modesto barbeiro o deixe entrar em casa do seu senhor. Basta que apareça!

Fiora pensou sentir um traço de fel naquelas últimas palavras. Entretanto, o homem abriu a porta com uma nova reverência.

Ora vamos, senhor Olivier! protestou Commynes com um ligeiro encolher de ombros. Vós é que decidis quem entra aqui.

Quem é? perguntou Fiora quando a porta voltou a fechar-se e se encontraram os dois numa espécie de antecâmara mobilada com apenas um cofre, mas ornamentada com belas tapeçarias.

O barbeiro do nosso sire. Chama-se Olivier lê Daim e é flamengo como eu, mas há quase vinte anos que está ao serviço do Rei e este gosta muito do seu talento como organizador de uma casa. Tem a seu cargo a organização das viagens e deslocações e, graças a ele, o Rei encontra sempre, onde quer que vá, as suas coisas sempre no mesmo lugar. É, também, um homem subtil e nunca abandona o seu senhor. Formaria até, juntamente com o secretário piemontês Alberto Magalotti, uma espécie... de... conselho íntimo do nosso sire, que não desdenha de ouvir os seus conselhos.

É assim tão importante, com tão pobre aparência?

A aparência não tem qualquer influência no Rei Luís e não estou certo se Daim terá algum poder. Como tal, convém desconfiarmos. Alguns chamam-lhe Olivier, o Diabo. Mas, eis-nos no nosso destino.

Depois de terem atravessado um quarto de grande sobriedade, cujos mais belos ornamentos eram, certamente, os cães que dormiam no tapete, Commmynes fez entrar Fiora num pequeno oratório cuja riqueza espantou a jovem: tapeçarias preciosas e panos pintados todos eles amovíveis, porque, segundo o costume da época, a capela do Rei, assim como os seus móveis, seguiam-no nas suas diferentes residências rodeavam um altar drapeado de brocado, sobre o qual se erguia uma cruz de pedra junto de uma estátua representando Notre-Dame de Cléry, à qual Luís XI votava uma devoção particular e de uma outra, de prata, com a efígie de São Miguel, em nome do qual o Rei tinha, no dia 1 de Agosto de 1469, fundado a Amboise, uma ordem de cavalaria. O colar de conquilhas dessa ordem repousava sobre a preciosa toalha do altar, contentando-se Luís XI, geralmente, em usar uma medalha suspensa de um simples fio de ouro. Outras efígies de santos guarneciam pequenos suportes na parede, algumas antigas e uma quase nova representando Santa Angadresme, a padroeira da cidade de Beauvais, que se opusera, vitoriosamente às tropas do Temerário em 1472. A estatueta fora oferecida ao soberano pela heroína local, Jeanne Laisné, cognominada Jeanne Hachette, que defendera as muralhas com mulheres e crianças... As cores quentes de um vitral faziam viver todos aqueles objectos.