Como é belo! suspirou Fiora. Enfim, uma sala digna do Rei de França!
Justamente porque é a única onde o nosso sire deixa de o ser. Só aqui vem como humilde servo de Deus.
Por São Luís, meu antepassado venerado, por vezes dizeis grandes coisas, Commynes! disse o Rei, que acabava de entrar. Mas, agora, deixai-me com donna Fiora e esperai no meu quarto... Luís ajoelhou-se para uma curta oração e a jovem achou por bem imitá-lo, o que fez com que, quando o Rei se levantou, a visse de joelhos e, estendendo-lhe a mão, a ajudasse a erguer-se. Quando ela ficou de pé, ele guardou na sua, por alguns momentos, a mão da jovem, mergulhando o seu olhar sonhador no dela.
Então? Aquele monge espanhol? De onde o conhecíeis?
De Florença, onde tentava minar o poder de monsenhor Lourenço por ordem do Papa Sisto, que deseja dar a nossa cidade ao sobrinho, Girolamo Riario...
Nós conhecemos muito bem as ideias de Sua Santidade, mas a pergunta era para vós.
É uma longa história, sire...
Os olhos do Rei ergueram-se para a cruz de pedra no altar:
Deus nunca tem pressa. Nós também não, quando se trata do Estado. Falai!
Sem voltar a insistir, Fiora começou a penosa história das suas relações com frei Inácio. Fê-lo com toda a objectividade possível, sem tentar carregar as cores já de si bem escuras. A jovem sabia que com um homem com a têmpera e sobretudo com a inteligência de Luís XI, um relato claro, isento de qualquer paixão, seria mais bem entendido do que um lamento dramático.
Portanto, o senhor de Médícis mandou expulsar este monge de Florença disse ele quando Fiora se calou. Evidentemente, é sempre delicado atingir um membro da Santa Igreja, mas parece-nos um pouco leviano ele não ter posto este fanático fora de acção. Quando o Papa se desleixa nos seus deveres para com os príncipes cristãos, é dever destes pôr as suas terras, as suas gentes e a sua pessoa ao abrigo. Frei Inácio Ortega vai poder reflectir durante muito tempo sobre os perigos que há em misturar a ordem das coisas: ou se é homem de Deus, ou espião e assassino.
Talvez se passe com facilidade de uma para a outra quando se entra na política e creio saber que muitos padres fizeram isso?
E o Papa mais do que os outros! Receio que ele seja mais um soberano secular do que um pai espiritual. Além disso, não gosta de nós. O nosso querido primo, o duque Carlos, é que tem as suas preferências. Provou-o claramente ao lançar o seu núncio, Alessandra Nanni, bispo de Forli, entre ele e o Imperador aquando do caso de Neuss. Graças à habilidade deste, não houve vencedor nem vencido. Reconciliaram-se, só por palavras, sem dúvida, mas o Temerário retirou as suas tropas, o que, no que nos diz respeito, estavam muito bem onde estavam. Ficou, assim, livre para se poder virar contra nós...
Mas não fez nada?
É difícil fazer a guerra quando não há dinheiro nem tropas frescas. Este monge era um bom meio de acabar de uma vez por todas com o Rei de França...
O Rei está certo... de que ele não poderá escapar?
Luís XI semicerrou os olhos, deixando passar um clarão de divertimento e sorriu:
Se tivermos oportunidade nos tempos mais próximos, mostrar-vos-emos o nosso castelo de Loches. Mesmo que crescessem asas a esse monge, não conseguiria voar. Mas, basta de falar de castigos! Vós salvastes-nos a vida e nós desejamos testemunhar-vos uma gratidão à medida do serviço prestado! Que desejais?
Fiora voltou a dobrar um joelho e, inclinando a cabeça:
Eu sei que vou pedir demasiado ao Rei, mas tudo o que desejo é a vida... e a liberdade do conde de Selongey.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que a jovem estremeceu e, sem ousar erguer os olhos, acrescentou com voz fraca mas audíveclass="underline"
Não desejo mais nada, sire...
Sempre sem dizer nada, Luís XI segurou no queixo de Fiora com dois dedos e olhou longamente para os grandes olhos cinzentos, dos quais caía uma lágrima.
Pobre criança! suspirou ele suavemente. O amor prende-vos numa prisão mais cruel do que os calabouços de Loches! Não, não digais mais nada!... Nós estávamos persuadidos, ao vir a esta capela, que nos pediríeis o perdão desse homem. Devemos-vos muito para o recusar... se bem que isso contrarie as esperanças que tínhamos em vós. Levantai-vos!
O Rei virou-se, foi pegar na estatueta de Santa Angadresme e olhou para ela como se procurasse um defeito qualquer.
Sire começou Fiora o reconhecimento que eu...
Não! Não quero agradecimentos! Talvez... não sejamos dignos de tanta gratidão como imaginais... Ao mandar-vos vir aqui, tínhamos pensado, sobretudo tendo-vos visto antes, que seríeis para nós... uma boa refém, de maneira a obrigar o senhor de Selongey a servir-nos. Vós destes-nos a entender que o nosso prisioneiro não vos ama a esse ponto! Portanto, concebemos outro plano: conseguir os vossos serviços contra o Temerário em troca do perdão. Este maldito monge e o seu punhal vieram meter-se de permeio... Enfim! suspirou ele amanhã sereis conduzida a Compiègne, junto de...
Que o Rei me perdoe por o interromper, sire, mas eu creio que não nos estamos a entender. A ideia da morte daquele que eu acreditava ser o meu marido era-me insuportável. Ele viverá e eu agradeço a clemência do Rei, mas eu não quero mais nada. Não disse, no outro dia, a Vossa Majestade que estava disposta a servi-la e que, ao fazê-lo, podia saciar o ódio que sinto pelo duque da Borgonha? Nada mudou.
Luís XI baixou devotamente a preciosa figurinha antes de a recolocar no suporte. Sem se virar para Fiora, perguntou:
Não desejais levar-lhe vós mesma a notícia inesperada da sua libertação? Isso seria, parece-me, uma bela e nobre vingança?
Não, sire. Nem sequer o quero ver, para não me arriscar a cair sob o encanto em que ele me manteve cativa. Atingindo o senhor que ele estima mais do que qualquer outra coisa no mundo, a vingança será maior...
E com esse objectivo vós faríeis... não importa o quê? Mesmo... entregar-vos a outro homem?
Se o meu casamento não passou de um logro, não tenho que temer o adultério. Que o Rei ordene! Obedecerei.
Seja. Ide ter com messire Lascaris. Esta noite jantareis os dois à nossa mesa, na intimidade. Ninguém se espantará depois do que fizestes hoje pelo reino. Sabereis mais tarde o que tendes de fazer...
Ajoelhando-se de novo defronte do altar cintilante, Luís XI afundou-se em profunda oração. Fiora saudou ao mesmo tempo Deus e o Rei e retirou-se às arrecuas...
A tempestade que ameaçara rugindo durante todo o dia, girando em redor da cidade e das grandes florestas que a circundavam, caiu quando chegou a noite, desabando sobre todas as coisas como uma verdadeira catarata. Todas as ruas ficaram transformadas em rios e as goteiras noutras tantas pequenas cascatas. Os trovões invectivavam majestosas imprecações e os relâmpagos sucediam-se uns aos outros... Não havia vivalma nas ruas. Apenas os soldados, de guarda às muralhas, recebiam o dilúvio estoicamente. Depois do calor sufocante, que fazia as armaduras tão pesadas, o enorme aguaceiro devia ser deliciosamente refrescante.
Postado por trás da janela do seu quarto, Luís XI observava a tempestade com satisfação: pensava no seu ”querido irmão”, o Rei Eduardo IV de Inglaterra, que, de barriga vazia e pés na água, devia esperar com alguma impaciência a conclusão do acordo secreto que lorde Howard e John Cheyney tinham vindo, seis dias antes, estabelecer com ele. Esses dois, que deveriam ter ficado, como combinado, como reféns até que o exército inglês tivesse cruzado o mar, eram os únicos que não deviam passar fome: antes de os reenviar ao seu senhor, tinham sido alimentados e dessentados regiamente, circunstância que devia dar calor aos seus propósitos...