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Os Ingleses devem esperar-nos como se fôssemos o Messias! declarou o Rei esfregando as mãos. Tanta água e nem uma gota de cerveja, ou vinho, para levantar o moral...

Esperemos, no entanto, que a chuva pare até amanhã. Se partimos amanhã para Amiens? disse Commynes.

É claro que partimos amanhã. O encontro com Eduardo está previsto para 29 deste mês em Picquigny e, daqui até lá, muitas coisas têm de ser postas no seu lugar. Amanhã também darei ordens a Tristan Lhermite, o nosso Grande Preboste, para que liberte o senhor de Selongey e o mande acompanhar, com uma boa escolta, até Vervins. Ali, deixá-lo-ão, fazendo-lhe saber que o Temerário está em Namur. Assim, juntar-se-lhe-á sem dificuldade...

Ides libertar um homem que vos quis matar? Sire, estareis a ser razoável? Donna Fiora salvou-me a vida e foi a liberdade dele que ela pediu como recompensa.

Porquê? É insensato!

Ela é mulher dele. Foi por isso que a quis ver... Vamos, Commynes, não faças essa cara! Ao libertar aquele figurão estou a fazer, creio, o maior negócio da minha vida. Donna Fiora pensa que o marido é bígamo e talvez seja! Ela não sabe ao certo se ele a ama ou a odeia. Uma coisa é certa: ela não o quer ver nunca mais. Mas o que é mais manifesto, é o ódio que ela vota a Borgonha, cuja morte jurou. Vou-lhe fornecer os meios para isso.

Como?

Vou enviá-la a Campobasso, que é um dos principais chefes de guerra do Temerário, mas que parece não saber de que lado está a manteiga na sua fatia de pão...

Estou a ver: ela representa o pequeno bocado de manteiga encarregado de explicar a esse condottiere que as vacas francesas produzem melhor e mais abundante leite do que as vacas borgonhesas?

Luís XI riu-se e aplicou uma boa palmada no dorso do seu jovem conselheiro.

É um prazer conversar convosco, messire Philippe... se bem que a vossa metáfora campestre não se coadune muito com tal beleza. Diz-se que Campobasso gosta muito de mulheres e esta, maravilhosa, vem de Itália, como ele.

Ela não vai correr um grande perigo? Para ir ter com o napolitano, vai ter que atravessar regiões infestadas de soldados!

É uma mulher jovem... e frágil, para ser assim lançada numa fornalha acrescentou Commynes gravemente. Tão gravemente que o Rei franziu as sobrancelhas.

Por Deus, compadre, estás a ficar apaixonado? Lembra-te que o teu coração pertence a dame Hélène, a tua graciosa esposa. A bela florentina não é para ti.

Preferis entregá-la àquele patife?

Prefiro! Poucas vezes tive nas mãos uma arma tão bela e tão bem temperada. Fica descansado, será protegida... Agora, vamos agradecer a Deus todas as bondades que tem tido para connosco e vamos dormir. Amanhã, antes de partirmos, verei donna Fiora para lhe dar as minhas instruções.

Se ela conseguir, que fareis por ela?

No dia seguinte à morte do Temerário, poderá pedir-me o que quiser. Além disso, vou dar-lhe um pequeno castelo rodeado por um belo terreno, que não está muito afastado da nossa residência de Plessis-lez-Tours...

Doce Jesus, sire! disse Commynes, escandalizado. Não estais a pensar fazer dela...

Nossa amante?... Eh, eh!... Não seria a vontade que nos faltaria, mas jurei não tocar em mais nenhuma mulher senão na Rainha e é um juramento que tencionamos cumprir. No entanto, a vizinhança com uma filha de Eva, ao mesmo tempo bela e inteligente, é um prazer que um Rei honesto pode dar a si próprio. Ainda por cima porque o Loire é o quadro ideal para tanta graça e encanto.

Estou de acordo convosco, sire, mas... e Selongey, bígamo ou não, nisso tudo?

Esperemos que, se o Temerário morrer, o seu mais fiel cavaleiro não tenha o mau gosto de lhe sobreviver. E poderemos, então, casar a sua viúva com um qualquer servidor fiel...

Que, claro, não será a minha pessoa! resmungou Commynes.

Tomais-me pelo Grande Turco, meu amigo? Eu já vos casei... e bem. Não choreis!

Deixando sair uma colecção de suspiros que dizia bem o que pensava dos projectos do seu senhor no que tocava à bela Fiora, o senhor de Argenton foi-se deitar, não sem pedir ao seu criado que fosse à cozinha procurar-lhe algumas fatias de empada, ou caça, escoltadas por um jarro de vinho. As penas do coração faziam-lhe sempre fome...

No dia seguinte, o Sol não apareceu. Ficou escondido por trás de espessas nuvens escuras de tal modo tristes que deixavam cair, de tempos a tempos, algumas lágrimas em forma de chuvisco, que se dissolviam mais depressa do que as trombas de água da véspera... O que não melhorava os caminhos, dos quais alguns se tinham transformado em pântanos, mas o Rei Luís não deixou de ordenar a partida em direcção a Amiens, onde Tanneguy du Châtel, que ali comandava importantes efectivos, o tinha precedido.

De pé sobre a muralha, na porta norte da cidade, Fiora, envolta numa manta negra com capuz que a preservava da chuva, observava a caravana do Rei, maravilhando-se com a força que aquele homenzinho de olhos vivos conseguira reunir! conduzindo o seu reino com a segurança de mãos de um bom cocheiro, sem parecer preocupar-se com os charcos que os grandes senhores feudais provocavam sob as rodas da sua carroça, encarniçados em conseguir a maior parte do bolo em forma de estrela que se chamava França. Era verdade que dispunha, para tal, de uma força nova e ainda desconhecida: um exército permanente, nascido das Companhias de Ordenança criadas pelo seu pai e que ele soubera levar à perfeição. Esse exército compunha-se de quatro mil lanças sendo a lança uma unidade táctica formada por um homem de armas, pelo seu pajem, pelo seu armeiro, dois archeiros e um moço de espada à qual se juntava a Guarda Escocesa e a Guarda Francesa. Para além disso, vinte mil francos arqueiros e artilheiros e mais seis mil homens de armas fornecidos pelos senhores franceses. Sem esquecer os canhões, a temível artilharia com que os irmãos Bureau tinham dotado a França sob o reinado de Carlos VII e que Luís XI tinha melhorado. Tudo aquilo formava, entre Dieppe e Reims, uma longa cortina de ferro, capaz de resistir vitoriosamente ao exército inglês.

Fiora, claro, só viu passar as duas guardas reais que precediam e seguiam Luís XI, que cavalgava à cabeça de um grupo cintilante de pendões, cotas de malha e armaduras alegremente coloridas. Ele próprio ia meio armado, usando por cima da cota de malha curta uma semicouraça, escarcelas, grevas e sapatos de aço. No entanto, não levava nenhum elmo emplumado, antes um chapéu de feltro negro retorcido na aba e ornamentado com uma medalha de São Miguel circundando a coroa de ouro. Desse modo, ia equipado com mais simplicidade do que qualquer dos seus guardas, mas podia dispensar a insígnia real, porque a sua postura orgulhosa e a sua elegância como cavaleiro não deixavam dúvidas acerca da sua posição: era mesmo o Rei. Quanto às suas bagagens, poderiam muito bem ser as de um Rei mago. Para além das carroças que transportavam a sua cama desmontável, a sua cadeira confortável, as suas tapeçarias, a sua capela e os seus cães, outras, numa fila interminável, transportavam os pesados cofres cheios de ouro, que tinham substituído as barricas parisienses; outras ainda transportavam vitualhas de todas as espécies e numerosos tonéis, cheios de vinho desta vez, que eram destinados a apaziguar a fome do exército inglês, como o ouro a sede de Eduardo e de alguns dos seus barões. Seguiam-se prostitutas, a pé ou em charretes, para sustentar o moral das tropas, como em todos os exércitos do mundo. Era assim que o Rei de França ia expulsar o inglês do seu reino, sem perder um único dos seus homens. No entanto, a flâmula de São Dinis acompanhava-o, como se marchasse contra o inimigo.