Assim equipado, Douglas Mortimer tinha um ar soberbo e majestoso, como testemunhavam os olhos redondos da jovem criada que o contemplava, de dedo na boca, sem que ele lhe prestasse, aliás, a menor atenção. Mas, ao ver entrar Fiora, levantou-se, esvaziou a caneca, atirou uma moeda para cima da mesa, pegou na bagagem e dirigiu-se à jovem:
Pronto! disse ele sobriamente. A etapa desta noite é em Villers-en-Retz!
A etapa desta noite é em Paris disse Fiora docemente, mas com firmeza. Tenho assuntos a tratar lá!
Nem pensar! grunhiu o escocês. - O Rei ordenou: vou conduzir-vos à Lorena.
Estou de acordo, mas ele não disse por que caminho. Vamos passar por Paris!
Isso é perder tempo. Quando o Rei manda, executamos. O Rei disse Lorena, é para a Lorena que vamos!
A voz do sargento o Tempestade começava a ganhar amplitude. Fiora compreendeu que era tempo de utilizar a paciência que Demétrios proclamava soberana em todas as coisas:
1 Hoje em dia Villers-Cotterêts.
Escutai, messire Mortimer: eu deixei em Paris, com uma perna partida, uma mulher que foi como uma mãe para mim, que eu amo imenso, que deve ter saudades minhas e que tem o direito de saber para onde vou. Não quero partir sem me despedir dela. Sois capaz de compreender isto?
Eu só compreendo as ordens do Rei. Se queríeis fazer um desvio por Paris, devíeis ter-lho dito.
Mas, enfim, que diferença faz ir por um lado ou por outro? exclamou Fiora, que começava a perder a sua preciosa paciência.
A mim não faz diferença nenhuma, mas o meu cavalo terá de fazer mais quinze léguas perfeitamente inúteis. Sem contar com o tempo que vamos perder! Ah, sois mesmo mulher urrou Mortimer, cujo bigode começava a eriçar-se de ira. Devíeis saber que, quando temos a honra...
Enfrentavam-se como dois galos de combate. Esteban deslizou por entre os dois e segurou Fiora pelos ombros, virando deliberadamente as costas ao escocês:
Escutai, donna Fiora! Sabeis como gosto de vós e acreditai que não pretendo dar razão a este escocês teimoso, mas é melhor não regressar à rua dês Lombards.
Quereis que eu parta para uma aventura, da qual talvez não regresse, sem abraçar a minha querida Léonarde? Oh, Esteban, pensava que éreis um homem de coração!
E sou, mas é em dame Léonarde que estou a pensar. A sua perna ainda não deve estar sarada. Seria preciso um milagre. Portanto, não a podemos levar connosco. Se fordes ter com ela, ela far-vos-á perguntas, inquietar-se-á. O que, de momento, não é conveniente. Ela julga que estais junto do Rei e do meu senhor. Não achais que é preferível não perturbar a paz do seu coração? Por outro lado, ignoro de que missão fostes investida e não quero saber, mas ela vai querer. Que lhe direis?
Fiora virou-se lentamente e as mãos de Esteban caíram. Seguiu-se um silêncio que Mortimer teve o bom gosto de não perturbar, talvez pensando que a sua adversária fora vencida. O que era o caso. Fiora sabia que Esteban tinha razão. A jovem nunca conseguira esconder nada a Léonarde quando esta queria saber qualquer coisa. Como dizer-lhe que o Rei a enviava à Lorena para seduzir ”por todos os meios” um dos capitães do Temerário, levando-o à traição pura e simples? Léonarde gritaria que nem uma possessa, meter-se-ia de permeio e talvez entrassem numa discussão e numa zanga que a jovem não poderia suportar... E, para já, precisava de toda a sua coragem. Erguendo os olhos, Fiora viu que Esteban a observava. Douglas Mortimer, desinteressando-se da questão, dirigira-se até à porta, a qual obstruíra com a sua possante estatura, e olhava para a chuva a cair.
Tendes razão, meu amigo. Mais vale deixar dame Léonarde viver docemente a sua convalescença no jardim de dame Agnelle. Aliás, é melhor isso, na sua idade, do que as rudezas dos grandes caminhos e, assim, ela poderá rezar por nós com toda a tranquilidade... Messire Mortimer! chamou ela.
O escocês virou-se:
Minha senhora?
Partimos quando quiserdes... para onde está decidido. Nessa noite fizeram etapa em Villers-en-Retz.
Terceira parte
OS MERCENÁRIOS
CAPÍTULO VIII
O CONDOTTIERE
A chuva não parava. O tempo, transtornado, fazia daquele fim do mês de Agosto uma espécie de Outono precoce e apocalíptico, durante o qual os rugidos dos trovões alternavam com chuvas diluvianas e violentas rajadas de vento. Podiam dar-se por felizes por receberem nas costas aquela chuva fina, que envolvia a paisagem com uma cortina de água. Aquilo molhava mais do que uma grande tempestade, mas era mais fácil de suportar. Fiora, envolta no seu grande manto com capuz apesar do calor pesado, e Esteban, na sua manta de cavalo, iam encolhidos, mas o Tempestade, como se estivesse no seu elemento, seguia envolto no seu manto sem perder um centímetro da sua corpulência. Bem direito na sela, de pluma bem erguida, conduzia o seu cavalo pelos caminhos transformados em lodaçais e pântanos com a mesma dignidade com que escoltaria o Rei. A sua grande estatura cortava o vento diante de Fiora, escondendo à jovem uma paisagem que, verdade seja dita, não tinha nada de reconfortante. A região de Champanhe, que atravessavam, sofrera terrivelmente com as últimas guerras e a despeito do punho do Rei Luís, que fazia reinar, ao menos, a segurança, o esforço de reconstrução permanecia fraco. Mesmo em Reims, a cidade real, a cidade sagrada, a miséria mostrava o seu rosto pálido. Aldeias inteiras tinham sido queimadas e estavam a ser reconstruídas, mas a chuva incessante não permitia distinguir o que estava a ser reedificado do que estava em ruínas.
Depois de Reims ainda era pior. Barrentos e desolados, os campos deixavam ver grandes placas esbranquiçadas entre os tufos de vegetação. Não havia albergues. Apenas alguns pobres priorados acolhiam os viajantes e, a despeito da boa vontade, só lhes ofereciam frutos, mel, queijo e o abrigo de uma granja que só tinha palha. No entanto, Mortimer recompensava essa hospitalidade regiamente, como homem que recebia ordens e as executava à letra, mais do que como senhor generoso: cada vez que tinha de se separar de uma moeda de ouro, as suas sobrancelhas franziam-se e o bigode retorcia-se por cima de uma careta.
Aposto que é avarento sussurrou Fiora uma manhã, quando abandonavam uma dessas pobres etapas. O Rei deve sabê-lo e deu ordens em conformidade. Se assim não fosse, este fanfarrão era capaz de nos deixar morrer à fome e fazer-nos dormir ao relento.
As relações entre Fiora e o seu guia não tinham melhorado. Uma segunda discussão tivera lugar em Senlis, quando a jovem recusara firmemente a liteira que o escocês lhe destinava e mostrara, abrindo o seu manto, o fato de rapaz.
Eu vou escoltar uma dama fulminou-a ele. Não um garoto!
Ides escoltar Fiora Beltrami declarou-lhe tranquilamente a jovem e espantar-me-ia muito se o Rei se tivesse dado ao trabalho de vos dizer como devo vestir-me e por que meio de locomoção devo viajar. Eu monto a cavalo desde a mais tenra idade e não tenciono passar horas sacudida como uma ameixoeira em Agosto nessa espécie de caixa. Além disso, andamos mais depressa!
Aquele último argumento fora decisivo, mas, depois disso, Douglas Mortimer só dirigia a palavra à sua companheira quando era indispensável. De manhã e à noite saudava-a sem dizer palavra.
Com Esteban, as relações não eram mais calorosas. O escocês e o castelhano detestavam-se e, por assim dizer, faziam os impossíveis por ser desagradáveis um com o outro. Foi assim que Esteban, tendo descoberto que Mortimer detestava ouvi-lo cantar, entendeu amenizar a lentidão da jornada regalando os companheiros com toda a espécie de baladas, romances e cantilenas que armazenara desde criança. O castelhano, aliás, tinha uma voz agradável, mas por nada deste mundo Mortimer o daria a entender. Limitou-se a dizer alto e bom som que choveria, sem dúvida, menos se Esteban se calasse.