Entretanto, Fiora e o seu mentor foram obrigados a reconhecer que a presença de o Tempestade nada tinha de supérfluo. O escocês seguia o seu caminho com segurança, sem nunca se enganar e quando, à passagem por um pequeno bosque, uma meia dúzia de bandidos caiu sobre os viajantes com a intenção evidente de os aliviar dos seus bens, foram obrigados a constatar que o sargento o Tempestade valia, sozinho, um esquadrão. À vista do inimigo entrou numa espécie de furor sagrado e, lançando um urro de fazer cair umas muralhas, se houvesse algumas à vista, brandiu a espada bem alto para os recém-chegados. Num piscar de olhos enviou três para a eternidade, o que fez com que os três restantes fugissem, perseguidos pelas maldições tonitruantes saídas de uma garganta digna de ter visto a luz do dia em Glenlivet, berço dos Mortimer. Aquelas vociferações votaram os descendentes dos malfeitores ao pior dos destinos, depois de terem emitido dúvidas insultantes sobre a qualidade dos seus pais e mães. Esteban, tão deslumbrado como os bandidos, nem teve tempo de desembainhar a sua lâmina... Limitou-se a juntar os seus cumprimentos não muito sinceros, porque se sentia frustrado aos de Fiora, tão aturdida como ele:
Se o Rei tivesse uma dúzia como vós disse esta podia muito bem desbaratar os exércitos de Borgonha numa só batalha...
Nós somos todos assim! Não fiz nada de extraordinário respondeu Mortimer, tão frio como ainda há instantes colérico.
O escocês acrescentou com uma simplicidade desarmante:
Nós, os Escoceses, somos os melhores soldados do mundo!
Em seguida, reajustando a boina que resistira vitoriosamente a uma acha atirada perfidamente ao acaso, retomou a marcha interrompida por momentos, seguido com algum respeito pelos dois companheiros.
Quando atingiram Meuse, que naquela região marcava a fronteira entre o reino de França e os estados do duque da Borgonha, Fiora pensou que chegara a hora de se separarem de Mortimer, já que um dos membros da famosa Guarda Escocesa tinha poucas hipóteses de ser bem acolhido nas terras do Temerário. A ponte e a pequena cidade de Dun já estavam à vista e a jovem deteve o seu cavalo.
Como estamos a chegar à Borgonha, não será tempo de nos deixardes, messire Douglas?
O escocês também parou e virou para a jovem um olhar gelado:
Campobasso está aquartelado em Thionvílle. Eu levo-vos até lá. O Rei quer saber como sereis recebida: devemos desconfiar desses mercenários italianos.
Por que razão hão-de ser menos dignos do que os outros? perguntou secamente Fiora, atenta ao seu orgulho florentino.
Precisamente porque são mercenários. Servem quem lhes dá mais e, em combate, são muito ciosos do seu sangue, e das suas vidas ainda mais. Em todo o caso, Campobasso nunca passou por um modelo de virtudes. Se assim fosse, quereis dizer-me o que faríamos aqui?
Se é assim tão fácil desviá-lo dos seus deveres, quereis dizer-me por que razão me enviaram? ripostou a jovem. Um saco de ouro seria suficiente. Dito isto, sinto-me... feliz por vos conservar como guia.
Gostaria de ter a certeza resmungou o escocês, reatando a marcha da sua montada.
Uns momentos mais tarde, após umas breves palavras com o capitão que comandava a pequena praça de Doulcon, que, face a Dun, guardava a velha ponte construída pelas legiões romanas, e paga a portagem, Fiora e os seus companheiros transpuseram a dita ponte para entrar na cidade. Esta marcava a fronteira do antigo ducado do Luxemburgo, que era agora terra borgonhesa desde que, em 1441, a duquesa Elisabeth de Gorlitz o cedera ao pai do Temerário. Não para seu bem. Os campos pareciam ainda mais miseráveis do que na região de Champanhe, devastados pelos Franceses demasiado próximos e pelo ocupante borgonhês.
Contrariamente ao que pensavam, os três viajantes não tiveram qualquer dificuldade em passar. Durante a última etapa, Fiora trocara o seu fato de rapaz por um vestido e uma coifa.
A sua beleza e elegância, e o ar marcial dos seus companheiros impressionaram visivelmente o oficial que comandava a guarda da ponte. Se ficou surpreendido por se ver perante uma nobre dama do outro lado dos Alpes, ou se tinha dúvidas acerca da sua autorização para percorrer um país abandonado pelo céu àquele ponto, esqueceu-as quando a jovem disse calmamente:
O conde de Campobasso que vós conheceis, talvez, é meu primo e eu desejo juntar-me a ele o mais depressa possível...
Ele ficará, sem dúvida, muito contente com uma visita tão bela, mas, até Thionville, onde ele se encontra, o caminho não é muito seguro para uma mulher. Sentir-me-ei feliz por vos escoltar, porque, se vos acontecer alguma coisa, ele não me perdoará.
Um passe será suficiente, capitão. O meu escudeiro e o meu secretário têm capacidade para me defender em caso de maus encontros...
Não ponho em dúvida o seu valor, mas um passe não é suficiente se cairdes em cima de um grupo de soldados em busca de comida, porque a maior parte não sabe ler. Acreditai-me, as capas de Borgonha sobre os ombros de dois sólidos rapazes ajudar-vos-ão mais do que todos os papéis do mundo.
E foi assim que no dia seguinte, depois de ter aceite a hospitalidade do oficial e encantado a sua memória por um período de longas semanas, Fiora, que ia engendrar a perda do duque da Borgonha, deixou Dun sob a guarda das suas cores. Dentro de dois dias, se não acontecesse nada de mais, estaria junto daquele que, de acordo com a sua missão, teria de levar à traição...
No outro dia, ao cair da noite, dois homens jogavam xadrez na sala alta do castelo de Thionville. Se bem que ainda houvesse alguma luz, um grande candelabro de ferro forjado, com uma dúzia de velas, iluminava o tabuleiro de ébano e marfim. Na grandiosa chaminé ardia um fogo que tentava combater a humidade. Construído no século anterior pelos duques do Luxemburgo, o castelo, com as suas paredes enormes era uma sólida fortaleza capaz de suportar qualquer assalto. Com efeito, Thionville e a região circundante formavam um canto enterrado no ducado da Lorena, com o qual os Luxemburgueses nem sempre estavam de acordo. Era preciso que a cidadela e as suas defesas estivessem à altura da sua missão e estavam, mas o conforto interior tinha algo de espartano, o que era apanágio dos edifícios militares.
A sala onde os dois homens jogavam não fugia à regra. Para além da pequena mesa onde repousava o tabuleiro e as duas cadeiras de braços estofadas de cinzento onde eles estavam sentados, a decoração compunha-se estritamente de um grande cofre de madeira enegrecido pelo tempo e de dois antigos trofeus de armas. Uma tapeçaria, que teria ganho se fosse três ou quatro vezes maior e alguns pendões de cores esbatidas, pregados lá no alto, sob a abóbada, faziam o que podiam para aquecer uma sala construída para as grandes assembleias e onde os dois homens pareciam um pouco perdidos. As janelas, altas e estreitas, abriam-se ao fundo de grandes vãos, comportando cada uma dois bancos de pedra e seria preciso um sol muito brilhante para que dessem uma claridade conveniente. Com tempo cinzento, deixavam passar apenas uma luz pobre, à qual era preciso suprir. Daí a luz das velas.
Os dois homens, por diferentes que fossem, eram igualmente notáveis. Um era grande, bem-feito e com aquela espécie de graça animal das grandes feras. Sob a túnica negra que o cobria adivinhava-se uma musculatura longa, solta, com a suavidade de um homem treinado em todos os exercícios do corpo. Os seus espessos cabelos negros, grisalhos nas têmporas, suavizavam um pouco um rosto de traços duros, de cor trigueira, sulcado por cicatrizes que desfeavam a harmonia clássica de um olhar negro, vivo e penetrante: era Campobasso. O outro, nitidamente mais pequeno, mas extremamente sólido, tinha a pele da cor do barro e os cabelos de diversas cores, de quem passara a vida ao sol. Também ele de olhar vivo, mas de um verde-escuro, que quase se tornava amarelo em redor das pupilas, nunca abandonava a sua brilhante cota de malha, que aparecia sob uma túnica vermelha com as suas armas: era o seu colega e amigo, Galeotto.