Em 1471, há quatro anos disse Fiora com um sorriso, ao ver iluminar-se, perante aquela precisão que afirmava a sua identidade como florentina, o rosto um instante antes desconfiado de Campobasso. A vossa duquesa Bona era muito bela! O meu pai teve a honra de dançar com ela...
E sentaram-se à mesa, evocando o esplendor do Magnífico para grande prazer de Fiora, feliz por poder falar da sua cidade amada, daquela Florença que tanto mal lhe fizera, mas cuja imagem e recordação nunca abandonariam o seu coração...
Duas horas mais tarde, de pé no vão da janela estreita do quarto onde a tinham conduzido, Fiora esperava Campobasso. A jovem sabia que ele viria, porque o seu olhar insistente, pouco antes, ao beijar-lhe a mão com um ”boa-noite” hipócrita, não enganava. Estava resignada, porque Commynes, por ordem do Rei, traçara-lhe, do condottiere napolitano, um retrato ácido, de uma extraordinária fidelidade. Estava ciente da sua situação ambígua e que teria de se haver com um homem arrebatado e sem paciência. Se se recusasse depois de o ter enfeitiçado, arriscava-se a sofrer as consequências. Mais valia dar-lhe a entender que era ela a seduzida: isso dar-lhe-ia mais poder...
Mas não queria deitar-se e era de pé que o esperava. O leito de cortinas vermelhas, datado do século anterior e suficientemente grande para quatro pessoas, que tinha sido aberto, permaneceria vazio o tempo que ela desejasse. Com efeito, o seu orgulho recusava recomeçar as primícias da cena atroz vivida em casa de Pippa, no bordel do bairro Santo Spirito: a rapariga oferecida meio nua, qual carne de caça numa travessa...
Em redor dos ombros, que tremiam contra a sua vontade, como se estivesse em pleno Inverno, a jovem apertava um xaile. No entanto, não tinha medo. Campobasso seria o terceiro homem a possuir o seu corpo, depois de Philippe e do nojento Pietro. Um trouxera-lhe o fascínio do amor total, o outro o horror de uma violação sádica, da qual guardava uma recordação terrível. Entre esses dois extremos, Campobasso não tinha hipótese de deixar qualquer marca. A jovem esperava-o com a indiferença de uma cortesã, cujo papel aceitara desempenhar. O seu corpo era uma armadilha, que visava a perda de um príncipe. Era preciso atrair o condottierecom força suficiente, para que se desligasse por completo do Temerário. Entretanto, era uma sorte e Fiora admitia-o de boa vontade o homem não ser desprovido de sedução.
Em Florença... um século antes, Demétrios prometera-lhe que a armaria para os combates futuros e cumprira a sua palavra. Uma noite, no barco que os conduzira à Provença, desenhara para ela um corpo masculino, indicando-lhe as zonas erógenas. Fizera-o com a frieza e desprendimento de um professor de anatomia para com uma aluna e esta recebera os seus ensinamentos com o mesmo espírito...
Em certos países de África e do Oriente, as raparigas são educadas desde tenra idade visando o prazer do homem disse-lhe ele então o que não é uma má coisa, porque o poder da mulher fica reforçado. Mesmo uma criatura tão bela como tu pode ter necessidade de ser iniciada. Ficarás mais temível.
Além disso, o grego fizera para ela um perfume, que deveria utilizar com moderação e unicamente em determinadas circunstâncias.
As mulheres dos haréns usam-no para excitar os sentidos do seu senhor e dono, mas acrescentara Demétrios com a satisfação de um inventor eu introduzi-lhe alguns aperfeiçoamentos.
Nessa noite, pela primeira vez, Fiora pusera um pouco desse perfume. Muito pouco, apenas, com a ponta do dedo, uma gota por trás da orelha e outra entre os seios. Era pouco, mas ela ficou com a impressão de ficar a cheirar como um queimador de perfume. Sentiu-se mais segura, sem dúvida, mas também com a impressão bizarra, de ter mudado de personalidade, em vias de se desdobrar. A sua alma afastou-se um pouco de um corpo cujas reacções e comportamento ela ia poder controlar...
No exterior, os sons daquela cidade desconhecida iam-se extinguindo. As luzes que punham um reflexo avermelhado no tecto do quarto vinham dos postos de guarda escalonados ao longo das muralhas e do Moselle. Os gritos que as sentinelas emitiam umas para as outras eram em dialecto lombardo, tão próximo do toscano que a jovem não pôde deixar de sentir um certo prazer... A cidadela luxemburguesa, emudecida e negra no fundo da noite, desaparecia por completo. As tropas que a ocupavam impunham-lhe a sua própria cor...
A porta, ao abrir-se, rangeu ligeiramente. A despeito da sua coragem, Fiora sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha. O momento difícil chegara, o instante em que necessitaria, mais do que nunca, de permanecer senhora de si mesma...
Da sombra destacou-se outra sombra ainda mais densa do que o reflexo longínquo da vela, que sussurrou:
Ainda não estais deitada? disse Campobasso. Não sabíeis que... eu viria?
Sim... mas eu não me deito quando espero uma visita. Isso seria colocar-me numa situação de inferioridade...
Há visitas e visitas e a mim não me parece que a minha presença neste quarto seja uma... Esperava...
Ela fez-lhe frente bruscamente, os olhos a faiscarem.
O quê? Encontrar-me naquela cama, nua e de pernas abertas, à espera do vosso prazer?
Por São Gennaro! Que violência! Não poderemos recomeçar a nossa conversa de há pouco? Recordai-vos! Eu ia tomar-vos nos braços...
A jovem esperava uma reacção brutal, o que não aconteceu. A sua voz, pelo contrário, era doce e suplicante. O homem estava tão perto dela que Fiora lhe podia ouvir a respiração curta e reteve um sorriso de triunfo: tê-lo-ia já dominado, quando recebera dela apenas o direito de lhe beijar a mão? A fera já estaria à sua mercê? Fiora sentiu a tentação de o pôr à prova, repelindo-o, mas veio-lhe à memória uma frase do seu querido Platão: ”Dá e receberás...”
Então, que esperais? disse ela com um sorriso provocante. Ou... preferis despir-me primeiro?
A jovem sentiu tremer as mãos que ele já pousara na sua cintura. Em seguida subiram, acariciaram-lhe o pescoço de passagem, agarraram no decote do vestido e puxaram... O tecido rasgou-se até à cintura, mas já Campobasso apertava Fiora contra si, afundando o rosto na massa de cabelos negros, cobrindo-lhe o pescoço de beijos devoradores e apoderando-se em seguida dos seus lábios, levando-a depois para o leito, onde acabou de lhe reduzir o vestido a farrapos antes de se atirar para cima do seu corpo nu... como um animal sedento sobre um riacho fresco.
Arrebatada por um furacão de carícias e beijos, Fiora, passada a primeira explosão de brutalidade, descobriu que aquela fera podia ser um amante apaixonado, sabendo tocar num corpo feminino. Esperava um soldado e saiu-lhe um apaixonado. Esperava poder manter a cabeça fria, mas, traída pelos seus sentidos, permitiu, por várias vezes, que o prazer a transportasse nas suas ondas abrasadoras. E a noite estava quase no fim quando o sono, por sua vez, a venceu e a fez esquecer que, se tinha, também ela, conseguido uma vitória, esta fora muito parecida com uma vitória à Pirron.
Com a orelha colada à porta do quarto, o pajem Virgínio, de dentes ferrados no punho e quase desmaiando de raiva impotente, contara todos os queixumes, todos os suspiros, todos os estertores que o jogo ardente do amor tinha arrancado àquele casal invisível...
Quando os tambores acordaram os soldados, Campobasso, suficientemente treinado nos combates de Vénus para que uma
1 Primeiro grande céptico grego.
noite de amor o submergisse no sono a ponto de não os ouvir, deslizou do leito cuidadosamente para não acordar Fiora, vestiu a camisa e os calções e dirigiu-se à grande sala onde já Salvestro, o seu escudeiro, o esperava.
Vai-me buscar os dois homens que acompanhavam ontem donna Fiora! ordenou ele enquanto devorava um bocado de pão duro que ficara em cima da mesa. Depois, leva vinte soldados para a escada.