Pára de rir! Quem te disse...
Que tu mataste a tua mulher? Mas, meu caro, isso faz parte da tua lenda. Mas, não te preocupes, não estou preocupada!
O que é que te preocupa, então?
Tu, talvez! Eu não gosto de ser tratada como uma escrava, mas gostaria de ser, realmente, tua amante... na verdadeira acepção da palavra.
Nesse caso, põe-me à prova! Ordena! E obedecerei... Mas, suplico-te, não te recuses!
Seja! Consinto em pôr-te à prova. Ordeno-te que fiques onde estás e que não te mexas sob qualquer pretexto, antes de to dizer.
Que pretendes fazer?
Julgar a tua obediência. Não te mexas, senão... Lentamente, muito lentamente, sem desviar o olhar, ela tirou o xaile dos ombros, desatou a fita dos cabelos, deixou-a cair por terra e espreguiçou-se voluptuosamente, erguendo a sua massa lustrosa. Campobasso estava violeta:
Fiora! implorou ele.
Não te mexas!
Sem se apressar, bela e nua, ela foi até à arca onde Salvestro tinha pousado o vinho, serviu-se de uma taça e bebeu-a com pequenos goles, sorrindo sempre para o homem que torturava. Ele caiu de joelhos e gritou o seu nome:
Fiora! O tempo passa! Pára com esse jogo cruel!
É verdade: tu tens sede! Espera!... Eu dou-te de beber. Desta vez ela virou-se para reencher a taça de estanho, mas, ao mesmo tempo, ergueu da arca a bolsa onde tinha o seu perfume e um pequeno frasco, presente de Demétrios, bem entendido, que continha um soporífero, do qual deitou duas gotas na taça. Os seus grandes cabelos formavam um abrigo suficiente para que Campobasso não visse o que estava a fazer. Por fim, erguendo a taça nas duas mãos, a jovem aproximou-se dele e estendeu-lhe o vinho.
Bebe! disse ela docemente. Entretanto, eu dispo-te. Depois... vamos para a cama!
Ele bebeu a bebida de um trago e depois, atirando com a taça, tomou a jovem nos braços e atirou-se para cima da cama, que gemeu. Mas o efeito do soporífero não foi suficientemente rápido para que Fiora evitasse o assalto furioso que o seu amante lhe infligiu.
Quando ele adormeceu, ela deslizou do leito, foi lavar a taça com um pouco de vinho que atirou pela janela, voltou a encher o recipiente, colocou-o na mesa-de-cabeceira e deitou o resto do vinho fora. A chuva caía com força e faria desaparecer os vestígios. Em seguida deitou-se, bebeu um pouco de vinho, entornou o resto nos lençóis e fez de conta que estava a dormir.
Naturalmente, quando Salvestro entrou para acordar o seu senhor para o seu dever, foi impossível acordá-lo:
Ele bebeu como uma esponja suspirou Fiora. Está completamente embriagado!
Sobretudo, está embriagado de fadiga. E vós tendes alguma coisa a ver com isso... Não importa! Tem de partir, senão está perdido. Ajudai-me a vesti-lo!
Desviando o olhar para não ver Fiora levantar-se, ele já estava a enfiar os calções no corpo inerte que emitia grunhidos de protesto entre dois roncos. Os dois conseguiram vesti-lo e Salvestro foi chamar o sargento que comandava a pequena guarnição para que o ajudasse a meter Campobasso na sua armadura. Escondendo a sua decepção, Fiora observava-os. Descobria que o pior dos estratagemas femininos era impotente contra a devoção cega de um velho servidor.
Vestido e armado, o condottiere foi içado e atado sobre um cavalo que Salvestro, que se equipara num abrir e fechar de olhos, segurava pelas rédeas:
Eu acompanho-o até ele acordar. Se for preciso ir até Conflans, vou até Conflans disse ele ao sargento.
E, inclinando-se sobre a sela, disse-lhe algumas palavras ao ouvido, abandonando em seguida o castelo.
Com um encolher de ombros resignado, Fiora regressou ao leito manchado de vinho...
Salvestro regressou ainda de dia. Campobasso retomara a consciência de madrugada e regressara ao acampamento a toda a brida sem compreender nada do que lhe tinha acontecido.
Entretanto, a sua escapadela iria ter, para o seu orgulho, terríveis consequências. Nessa mesma noite chegara socorro a Gratien d’Aguerre, o valente governador de Conflans, na pessoa de Briey, que vinha em sua ajuda com uma parte das suas tropas. Campobasso conseguiu, mesmo assim, chegar ao acampamento, mas para ver chegar pela sua retaguarda o duque Renato II em pessoa, regressado de França com quatrocentas lanças sob o comando de Georges de La Temoille, que lançou contra ele aquela nova força, à qual se juntou um corpo de cavaleiros e archeiros lorenos. Compreendendo que ia deixar ali a vida, o condottiere apressou-se a levantar o cerco... e experimentou uma das mais terríveis cóleras do duque da Borgonha. Acusado de traidor e incapaz, Campobasso, com a raiva no coração, teve que se curvar à tempestade, jurando que se desforraria.
Quando a notícia chegou a Pierrefort, Salvestro deitou lume pelos olhos e Fiora ficou, por momentos, em perigo:
Talvez ele me mate, mas, se recomeçar esta loucura convosco, juro-vos que vos estrangularei com as minhas próprias mãos! berrou ele pondo-lhe debaixo dos olhos duas possantes tenazes felpudas capazes de quebrar o pescoço de um urso, mas ela olhou para ele friamente:
Far-me-eis um favor disse ela. Pensais que gosto deste género de vida?
E, encolhendo os ombros, a jovem girou nos calcanhares e dirigiu-se para a capela anexa à casa. Os construtores do castelo deviam ser piedosos, porque, para além da capela, tinham construído um oratório entre as cozinhas e o corpo da guarda para uso dos servidores e dos soldados.
Não era a primeira vez que Fiora entrava no pequeno santuário mal iluminado, pesadamente ogival, que ninguém cuidava. Um altar nu, uma cruz de pedra, nas paredes alguns frescos
1 O desenho das fronteiras do Luxemburgo, Lorena e França era, então, extremamente tortuoso, com bolsas e reentrâncias que tornavam muito difícil a sua compreensão mais ou menos dois mil e quinhentos homens
degradados pela humidade e um velho banco comido pelo caruncho... era tudo o que estava à vista. No entanto, a jovem gostava de ir ali por causa do silêncio. E ficou longas horas sentada no velho banco, sem rezar perdera o hábito e nem sequer tentava recuperá-lo as mãos unidas em redor dos joelhos, procurando desenredar a meada da sua vida naufragada.
O fio a que, obstinadamente, se tentara agarrar durante tantos dias, era o amor de Philippe, mas até isso já não tinha qualquer sentido, já que ele se tinha casado, ou casado de novo. Já não tinha o direito de pensar nele, mas, apesar de tudo, continuava no fundo do seu coração, como a ponta de uma flecha que nenhum cirurgião conseguiria arrancar sem causar a morte do paciente. E Deus sabia que, por vezes, sofria! A esperança que trouxera consigo ao deixar Florença apagara-se sem conseguir curar a ferida invisível que, agora, era envenenada pela recordação de Campobasso e das alegrias carnais que dele recebera. Que faria quando o Temerário tivesse recebido o seu castigo? Iria para um convento? De maneira nenhuma! A recordação de Santa Lúcia reforçava a repulsa que sempre tivera pela vida monástica. Juntar-se a Demétrios e continuar com ele a sua vida errante em busca da sabedoria? Aquilo não a tentava e, aliás, Demétrios não precisava dela. Portanto... morrer seria, talvez, a melhor solução, mas na condição de essa morte acontecer sob o céu de Florença, para que as suas cinzas pudessem repousar na mesma terra que cobria o corpo do único ser que a amara verdadeiramente sem nunca pedir nada em troca: Francesco Beltrami... o seu pai. Quanto a Campobasso, nunca mais a tocaria, nem que, para o evitar, tivesse que se matar.
Transformou aquela decisão em juramento quando se soube o que acontecera em Briey, ao mesmo tempo que o duque Carlos, à cabeça do seu grande exército, descia para sul, contornando Nancy para atacar Épinal. Campobasso, encarregado de submeter a cidade fronteiriça, atacara-a com a raiva e o furor nascidos da sua humilhação. Briey só tinha, como guarnição, quatrocentos alemães, os seus habitantes e as tropas que ali tinha deixado Renato II antes de ir em busca de outros soldados, porque, tendo consciência da fraqueza do seu exército, repatriara-o pelas cidades principais antes de se afastar. A artilharia também não era famosa: três ou quatro peças. O condottiere, com os seus seis mil homens, tomou-a sem muita dificuldade, mas lembrou-se da ajuda que Gerard d’Avilliers, o governador, levara a Conflans. Uma vez dentro da cidade que se defendera corajosamente e que os seus soldados pilharam, mandou pendurar nas árvores todos os soldados da guarnição sob os olhares dos seus chefes e, sobretudo, de Gerard d’Avilliers, cujo braço tinha sido decepado por uma bala de canhão. O horror submergiu a Lorena nesse mês de Outubro, ao mesmo tempo que o Temerário, que contornara a capital por Custines e Neuveville, arrasava o sul do ducado que queria conquistar antes de atacar Nancy. Toda a Lorena erguia os braços ao céu, ao mesmo tempo que o povo tentava escapar à ferocidade dos seus vencedores.