Do alto das muralhas de Pierrefort, Fiora podia ver filas de camponeses miseráveis, sem tecto nem comida, arrastando consigo crianças, velhos e feridos, procurando um abrigo contra aquela chuva que não cessava e que engrossava rios e ribeiros. Alguns aproximavam-se do castelo, suplicando que lhes abrissem a porta e os socorressem, mas Salvestro era impiedoso e repelia-os à pedrada e a tiros de flecha, sem se preocupar com a cólera de Fiora.
Que espécie de mãe te deu à luz, miserável? gritou-lhe ela em pleno rosto diante dos seus arqueiros. Nem os lobos matam se não tiverem fome. Tu e o teu ignóbil senhor, matais por prazer, porque vos achais ao abrigo de qualquer castigo...
O meu senhor ignóbil? Não o achas tão terrível quando te beija, minha puta florentina. Eu sei qual é a canção que tu cantas quando ele te cobre. E ele há-de voltar!
Nunca, entendes? Nunca mais me tocará. Pela minha alma to juro!
A tua alma? troçou o velho. Não se perde grande coisa! Não passas de uma andarilha, de uma espia, pronta a fazer qualquer coisa. Sai-me da frente antes que eu perca a paciência.
Então, com toda a força, ela esbofeteou-o e escarrou-lhe no rosto, antes de fugir a correr, perseguida pela voz rouca de furor de Salvestro:
Ele há-de voltar! Há-de voltar em breve, aquele que é teu e meu senhor, e saberei que lhe dizer!
Encolhendo os ombros, a jovem foi, a correr, fechar-se no seu quarto, mas passou primeiro pela cozinha de onde tirou uma faca, decidida a servir-se dela contra fosse quem fosse que a atacasse e, se lhe faltasse a esperança, contra si mesma.
Mas Campobasso não regressou... Quem apareceu, por uma manhã carregada de bruma dos primeiros dias de Novembro, foi, sob o estandarte de Borgonha, uma tropa de cavaleiros escoltando um cavaleiro já idoso, de porte altivo, diante do qual as portas se abriram quando gritou:
Da parte de monsenhor Carlos, príncipe e duque de Borgonha, conde de Charolais, eu, Olivier de La Marche, cavaleiro da honorável Ordem do Tosão de Ouro e capitão das guardas do dito senhor duque, exijo que nos permitais o acesso a este castelo!
Reunindo à pressa uma guarda de honra e vestindo a sua melhor túnica, Salvestro mandou baixar a ponte e erguer a grade. De imediato, os cavaleiros entraram por ela e avançaram até meio do pátio.
Desejo falar disse o chefe àquele que comanda esta praça.
Sou eu, monsenhor. Salvestro da Canale, escudeiro de monsenhor o conde de Campobasso, às vossas ordens.
Muito bem. Entregai-me uma mulher, uma tal Fiora Beltrami. Ela está aqui?
Está... mas eu recebi ordens de velar por ela e de a manter junto de mim até o meu senhor me dar ordem para a libertar.
O capitão inclinou-se, agarrou Salvestro pela gola da sua túnica sem esforço aparente e ergueu-o do solo:
Eu obedeço ao duque de Borgonha e ele ordenou-me que viesse buscar esta mulher. Entendeste?
Entendeu muito bem cortou a voz fria de Fiora, que avançou alguns passos para fora da casa. Eu sou Fiora Beltrami. Que me quereis?
Sem procurar esconder a surpresa perante aquela jovem delicada, de porte altivo e toda vestida de negro que o olhava tranquilamente com os maiores olhos que jamais vira, Olivier de La Marche baixou involuntariamente o tom de voz para declarar:
Tenho ordem de vos prender e conduzir perante o meu senhor.
Prender-me? Cometi algum crime?
Ignoro-o. Estais pronta a seguir-me de boa vontade?
Até com prazer! disse ela com um pequeno sorriso, dirigido depois a Salvestro, que lutava visivelmente contra a cólera. Posso levar o que me pertence? Aliás, é pouca coisa.
Sem dúvida. Um dos meus homens ajuda-vos. Entretanto, espero que me tragam um cavalo devidamente selado.
Um momento mais tarde, Fiora regressava envolta no seu manto negro e seguida por um soldado que lhe transportava a bagagem ligeira. Um cavalo esperava-a. A jovem dirigiu-se para ele, mas o capitão pôs pé em terra e interpôs-se. Tinha na mão uma corda:
Devo atar-vos. Se me prometerdes não tentar escapar, atar-vos-ei as mãos à frente...
Ah!... A esse ponto?
Sim.
Bem... De qualquer maneira suspirou ela disse-vos que me sentia feliz por deixar esta prisão.
Mesmo se outra vos espera?
Seja o que for, estou certa que me agradará mais.
Com os punhos ligados, ajudaram-na a montar o cavalo e o oficial envolveu-a, até, no manto, puxando-lhe o capuz para a cabeça para a abrigar da chuva. Em seguida, voltando a subir para a sua montada, pegou nas rédeas do cavalo da jovem e colocou-as sobre a sua manopla.
Tendes o direito de me dizer para onde vou? perguntou Fiora enquanto, ao lado de La Marche, transpunha a ponte levadiça de Pierrefort.
Não é segredo nenhum. Ides para Nancy, para o acampamento de monsenhor, o duque. Chegaremos esta noite.
Muito bem.
Abrigada pelo capuz, a jovem permitiu a si própria um sorriso. Tudo era preferível a permanecer cativa de Campobasso, mesmo que isso significasse o falhanço da sua missão. Ia, por fim, aproximar-se daquele príncipe fabuloso, de quem os amigos só falavam bem e os inimigos mal, aquele Carlos o corajoso, ou o Temerário, a quem Philippe de Selongey estava ligado pelo juramento de cavaleiro do Tosão de Ouro e pela lei feudal... aquele homem, enfim, que Demétrios e ela mesma, tinham jurado matar. E eis que, agora, era sua prisioneira e talvez fosse ele a matá-la. Mas, no fundo, não tinha importância... na condição, porém, de o destino não a colocar perante Philippe... Era preciso que a ferida secreta não recomeçasse a sangrar, se queria defrontar a morte com rosto sereno.
CAPÍTULO X
DIANTE DE NANCY..
Do alto da aldeia de Laxou Fiora viu estender-se a seus pés duas cidades. Uma, feita de tendas de cores vivas encimadas por flâmulas de tons diversos, dispostas em volta de uma construção meio-arruinada entre delgadas torres pontiagudas; a outra, coroada por diversos fumos, erguia as suas muralhas e torres, defendidas por fossos e elevações de terreno. Alinhados diante da primeira e sobre as muralhas da segunda, os canhões disparavam e o seu som terrível era acompanhado por gritos. Homens agitavam-se de um lado e de outro. A despeito do tempo cinzento, as armas e as couraças brilhavam. Homens caíam sobre os parapeitos das trincheiras cavadas em frente da cidade de tela e sobre os baluartes da cidade de pedra, na qual se via arder, com grandes chamas vermelhas e nuvens de fumo negro, o que devia ser uma casa...
Nancy não era uma grande cidade. Cinco a seis mil habitantes viviam naquele quadrilátero com cerca de seiscentos metros quadrados por quatrocentos, mas era, de qualquer modo, a capital do ducado da Lorena e uma cidade nobre, para a defesa da qual os seus príncipes tinham edificado altos muros, nos quais grandes palanques de madeira protegiam as seteiras. Poucas torres, porém: para além das duas, gémeas, que defendiam a porta