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Talvez se devesse àquela armadura que ele vestia com à-vontade e que ela nunca lhe vira, àqueles cabelos mais curtos, àqueles vincos provocados pela fadiga e à pequena cicatriz que ele tinha na face, mas o seu coração começou a bater com toda a força e a ferida secreta voltou a sangrar a despeito da alegria furtiva sentida quando ele reivindicou o seu título de marido. Uma alegria que rapidamente se apagou. Renegada e abandonada, enganada agora porque outra mulher usava o seu nome, Fiora chamou o rancor em socorro do seu coração demasiado fraco.

É verdade admitiu Selongey e não escondi ao vosso pai o uso que pretendia dar a essa soma importante, mas casei convosco por outra razão, Fiora. Lembrai-vos!

Não ides pretender, agora, que me amáveis, quando não queríeis de mim senão uma noite? Abandonastes-me, sem tencionardes regressar, na manhã seguinte às nossas núpcias, para irdes ter com a única mulher que amais realmente e que deveis ter desposado quando pensastes que eu morrera. Isto admitindo que não o tenhais feito antes?...

Outra mulher? Eu casei com outra mulher? Eu, Philippe de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro, bígamo?

Eu não encontro outro termo. Ou, então, explicai-me quem é aquela Beatrice que reina no vosso castelo de Selongey. Disseram-me que era a donna...

Beatrice? exclamou Philippe. Ela ainda lá está?

E por que não havia de estar, se está em sua casa? Selongey desatou a rir, uma pequena chama de alegria acesa subitamente nos seus olhos cor de avelã.

Pensei que tinha regressado para casa dos pais. Ela é minha cunhada, mais nada.

Quando é que dizeis a verdade e quando é que mentis? Uma cunhada pressupõe, pelo menos, um irmão e vós dissestes ao meu pai que não tínheis mais nenhuma família.

E era verdade. O meu irmão mais velho, Amaury, morreu na batalha de Montlhéry, há dez anos. A sua viúva esperava, não vos escondo, que eu a desposasse, como é normal nas nossas famílias. Mas nunca me decidi a casar com uma mulher que não amava. A vós, Fiora... eu amava.

Amáveis-me... e, no entanto, partistes sem me deixardes a esperança de vos rever um dia.

Mas eu voltei! E foi para saber da catástrofe que se abatera sobre vós. Não tinha razão nenhuma para não acreditar.

Philippe!... Meu Deus... odiei-vos tanto!

Ao mesmo tempo transtornada e invadida por uma alegria quase demasiado forte depois de tudo o que sofrera, Fiora, esquecendo a presença do príncipe, já estendia os braços para o seu amor reencontrado e Philippe já se ia lançar a ela quando a voz fria do Temerário, que os observara em silêncio, os deixou imobilizados.

É uma história muito bonita, sem dúvida, mas, madame, já que tendes a honra de ser a condessa de Selongey quereis explicar-me por que razão sois a amante do conde de Campobasso e uma amante ardentemente amada, o suficiente para que ele deseje desposar-vos?

Como se acordassem de um sonho, ambos se viraram para ele num mesmo movimento automático. A alegre luz da felicidade vacilou e extinguiu-se na alma de Fiora, como se extinguiu nos olhos de Philippe; a jovem compreendeu que aquele príncipe, que os dominava com o seu esplendor quase bárbaro, iria fazer tudo para lhe arrancar o homem que amava, e preparou-se para o combate.

Não tendo mais ninguém no mundo, por que razão não haveria eu de procurar o único parente que me restava, mesmo se não passava de um primo afastado? disse ela calmamente.

E a vossa pressa era tão grande que não hesitastes em procurá-lo em Thionville, no meio dos nossos exércitos? Como sabíeis que ele estava lá?

Bastava saber onde estavam esses exércitos. Os feitos e gestos de um príncipe tão grandioso como Vossa Senhoria são conhecidos. Se me dirigisse para o local onde residia o duque de Borgonha, teria esperança de encontrar um dos seus principais capitães. Bastava fazer perguntas pelo caminho...

E a ideia de vos juntardes ao vosso marido não vos aflorou?

Eu já disse que não acreditava na realidade do nosso casamento. Aliás, eu pensava que ele já não era deste mundo. Philippe tinha assegurado ao meu pai que, para apagar a desonra de ter ligado o seu nome ao da filha... de um mercador, esperava encontrar em combate uma morte honrosa...

O duque virou-se para Philippe, que, de olhar perdido, escutara em silêncio, tão frio como a sua armadura.

Isto é verdade?

Que eu queria morrer? Sim, monsenhor, mas julguei mal as minhas forças e, sobretudo, não previ que a viria a amar tanto. No dia seguinte ao nosso casamento já sabia que não aceitaria não a ver nunca mais e que teria de regressar um dia...

Philippe falava como se estivesse a sonhar, com a estranha voz neutra e indiferente dos que Demétrios submetia ao seu poder hipnótico. Fiora quis correr para ele, mas um gesto imperioso do Temerário impediu-a.

Amáveis-me a sério, nesse caso, Philippe? Por que não mo dissestes? Por que partistes sem uma palavra, sem...

Chega! exclamou o duque. Eu não vos autorizei a falar com o conde de Selongey. Dizei-me antes de onde vínheis quando chegastes a Thionville?

De França, evidentemente. Depois da morte do meu pai fui para Paris, para junto de messer Agnolo Nardi, seu irmão-de-leite, que gere na rua dês Lombards o balcão e o banco Beltrami...

Mercadores! Lojistas! disse o duque com um desdém esmagador. Eis com quem casastes, Philippe de Selongey, vós, cujos antepassados estiveram nas cruzadas! A rapariga é bela, confesso, mas não é dos nossos...

Mas trouxe-vos, com o casamento, cem mil florins de ouro! rugiu Fiora, insultada por aquele desprezo. Entre nós, a nobreza está na honra de contribuir para a riqueza do Estado com grandes negócios e várias florentinas casaram com príncipes.

Baixai o tom, por favor! Não estais aqui perante um desses Médicis nascidos à sombra de um balcão! Além disso, esqueceis com facilidade que fostes denunciada como espia de Luís XI, encarregada por ele de seduzir Campobasso... e que cumpristes, escrupulosamente, a vossa missão. Não é verdade que na mesma noite da vossa chegada junto do vosso ”primo” o acolhestes no vosso leito? Não é verdade que durante três dias e três noites as portas do vosso quarto não se abriram? Não é verdade que ele vos mandou para o seu castelo de Pierrefort, onde, para voltar a dormir convosco, abandonou o seu posto diante de Conflans? Ainda há pouco, não esteve aí mesmo, junto de vós, prestes a ajoelhar-se para que eu concordasse em casar-vos? ”Amamo-nos, dizia ele. Fomos feitos um para o outro”... Que quereis mais? Devo chamá-lo para que ele nos conte, palavra por palavra, o que foram esses dias e essas noites em Thionville?

Bruscamente, Selongey perdeu a sua imobilidade de estátua e dobrou um joelho:

Com vossa permissão, monsenhor, retiro-me.

E, sem esperar pela resposta, girou nos calcanhares e abandonou a tenda. A sua figura era a de um homem que acabam de ferir de morte. Fiora, invadida pelo desespero, viu-o sair com os olhos secos. Por nada deste mundo deixaria que aquele homem feroz, que esperava, sem dúvida, gritos, choros e súplicas e não aquele silêncio aterrado que transformara a jovem em estátua, visse o seu sofrimento. Depois de Philippe desaparecer, ela virou-se para o duque, muito direita no seu vestido negro e ergueu para aquele esplendor púrpura os seus olhos tão cinzentos como o céu de Inverno:

Parece, monsenhor, que é melhor servir um príncipe nascido por trás de um balcão do que o grande duque do Ocidente. Vossa Alteza detesta, sem dúvida, messire de Selongey?

A ele? Tem a nossa estima e a nossa amizade.

Parece-me evidente. O que seria se o odiásseis?

Não vos lisonjeeis demasiado. Ele prefere sofrer a viver assim, ridicularizado publicamente. O adultério, entre nós, é punido com a morte.

Salvo quando se é príncipe, a acreditar na lenda do pai de Vossa Senhoria. Muito bem, mandai executar-me: assim, fica tudo arranjado.