Ainda bem! E depois, o que aconteceu?
Foi terrível. Messire Regnault, uma vez aquecido e reconfortado, pintou a manta. Vasculharam esta casa, apesar dos meus protestos, para tentar encontrar o homem que ”tinha ousado opor-se à justiça do príncipe” e, claro, não o encontraram.
Teria sido espantoso! disse Léonarde com um meio sorriso.
Eu disse unicamente aquilo que era suposto dizer: o mercador florentino tinha deixado Dijon na véspera de madrugada, sem dúvida para se dirigir a Paris, onde ia em negócios. Da criança, nem eu, nem a minha mulher dissemos nada, ainda que sire du Hamel se tenha encarniçado a procurá-la. Também não soubemos dizer o que acontecera ao padre Charruet, senão que partira ao mesmo tempo que o seu novo amigo. Com esse ainda foi mais fácil, porque não sabíamos absolutamente nada das suas intenções.
E o vosso parente, o cónego de Saint-Bénigne, que vos vendeu a peso de ouro a sua velha liteira? Ele não disse nada?
Seria preciso que tivessem sabido do negócio. Ninguém sonhou, sequer, com ele...
E o vosso pessoal, que viu algumas coisas, a começar pela minha partida, não foi interrogado?
Claro, mas acrescentou o senhor Huguet com um ar de dignidade ofendida vós devíeis saber, minha prima, que aqui não entra qualquer um. Eu sou muito difícil na escolha do meu pessoal e, uma vez que fazem parte da casa, prefeririam deixar cortar o pescoço a arriscarem-se a ser despedidos. Devem ter pensado que eram todos surdos, cegos e mudos. Juraram que messire Beltrami partira por Paris, onde contava confiar a um convento qualquer a criança que tinha encontrado...
Não foram atrás de nós?
Foram. O preboste da cidade enviou uns homens nos vossos calcanhares... mas na direcção oposta...
Bem, nesse caso, correu tudo bem! Por que razão, então, tendes tanta pressa de nos ver pelas costas? Ainda por cima porque a história não é de ontem nem sequer de antes de ontem?...
Para alguns, como messire Regnault, continua actual e se ele soubesse que uma jovem de nome Beltrami está na Cruz de Ouro...
Não vejo como o poderá ele saber? Ele mora em Autun, que não é aqui ao lado...
Ele morava em Autun quando era conselheiro nessa jurisdição. Agora é conselheiro do duque e ”tenente” do chanceler, com sede em Dijon. É uma personalidade importante!
Diabo! Foi para o consolarem por ter sido cornudo que o honraram dessa maneira? Na verdade, até parece um sonho! E, se bem compreendi, mora aqui, portanto?
Não na mesma casa, mas não é muito longe. Comprou, na rua du Lacet, perto da velha Peixaria, a casa de um antigo cavaleiro do duque Filipe o Ousado. É lá que vive há coisa de dez anos e, salvo para se dirigir à chancelaria, nunca sai, por assim dizer...
Nesse caso, por que vos preocupais?
Porque está muito ligado ao funcionário encarregado dos albergues e dos estrangeiros. Não é a vós que vou ensinar que temos de registar os viajantes? Não me estou a ver inscrever o nome Beltrami.
Bem, não o façais! respondeu vivamente Léonarde.
como o meu, por mais modesto que seja, vos pode, também,
comprometer... inscrevei antes o do doutor Lascaris!... Sim, é isso: recebestes esta noite Demétrios Lascaris, médico grego ao serviço de monsenhor Lourenço de Médícis, a sua sobrinha, a governanta desta, que sou eu, o seu escudeiro e... o seu secretário! Convém-vos assim?
O secretário é aquele que vinha na garupa do Outro e que parece um camponês?
Podeis ter a certeza de que, a partir de amanhã, ele terá o aspecto do cargo disse Léonarde, zombeteira. Por agora, evidentemente...
Quem é ele? Tem um ar esquisito...
Não vos preocupeis com isso! Se vo-lo dissesse, seríeis capaz de desmaiar para dentro do vosso caldeirão e isso estragaria a sopa. De facto, estão a chamar-vos, pelos sons que estou a ouvir.
Já vou, já vou! gritou o senhor Huguet, que acrescentou em voz mais baixa: Que decidistes?
Dir-vo-lo-ei amanhã. Dissestes-me coisas muito interessantes, que eu vou discutir com donna Fiora e os meus companheiros... Ah! outra coisa: servi-nos no nosso quarto, a todos. Vós receais demasiado a curiosidade. Além disso, estaremos mais tranquilos!
E eu também aprovou o senhor Huguet, que não evitou resmungar, como homem que desconfia por instinto do exotismo, contra um médico grego, coisa pouco séria. De imediato, Léonarde zangou-se:
O Rei de França apresta-se para o levar a sério! Por que não vós? Mas, se dais muita importância às honrarias, podeis chamar-lhe monsenhor, porque me esqueci de vos dizer que ele também é príncipe, descendente de um imperador de Bizâncio.
E com aquele tiro, que deixou o seu primo sem voz, Léonarde, abandonando a cozinha onde reinava, juntamente com os odores agradáveis, uma alegre algazarra, foi juntar-se a Fiora, mas não lhe contou logo o que acabava de saber, preferindo conceder a si própria um certo tempo para reflectir. Com efeito, sabia que, na lista dos que a jovem tencionava purgar da superfície da terra, Hamel vinha em primeiro lugar. Como iria ela reagir ao saber que o seu inimigo se encontrava tão perto dela, Quando pensava ter de procurá-lo em Autun? A tentação de nada dizer era grande para a velha solteirona, que temia ver o seu ”cordeirinho” enveredar pelo caminho do crime, mas, por outro lado, se a deixasse fazer a viagem a Autun, para ali saber, finalmente, que Hamel se encontrava em Dijon, só retardaria o inevitável. Conhecia demasiado bem a jovem para ter a menor ilusão: Fiora iria até ao fim da tarefa de que se incumbira, fossem quais fossem as consequências.
Léonarde limitou-se, portanto, a dizer que pedira que os servissem a todos no grande quarto e foi informar os outros companheiros.
A refeição que tomaram em conjunto foi excelente, porque Mestre Huguet cuidara dela muito particularmente e desenrolou-se numa atmosfera agradável. Fiora sentia-se feliz por ter cumprido a peregrinação que desejara e mais ainda por ter encontrado aquele jovem tio, para o qual se inclinava instintivamente o seu coração compadecido. A jovem via naquele acaso feliz um sinal do destino. Sentado na sua frente, Christophe julgava-se não muito longe do paraíso. As duas noites precedentes tinha-as passado, a primeira num bosque e a segunda no buraco de uma cerca, comendo o pão que trouxera do convento, alguns frutos selvagens e bebendo a água dos regatos. Não se sentira infeliz porque o tempo estava bom e porque se sentia apoiado por um desejo velho de anos: ver a tumba perto da fonte Sainte-Anne e rezar nela, porque, apesar de ter fugido do convento, não perdera a fé. E eis que no momento em que teria de decidir o seu futuro e escolher um caminho mas em que direcção? o céu lhe trouxera aquela bela jovem que era a imagem daqueles que tanto chorara. E nas suas veias corria o mesmo sangue. Graças a ela, a sua vida miserável dera uma volta e ele achava aquilo divertido, ele, que nunca tinha conhecido outra gente que não a da sua terra, partilhar a mesma mesa com um médico vindo de Bizâncio e um espanhol de Castela, sem contar com aquela encantadora sobrinha que se dizia florentina, apesar de ter visto o seu primeiro dia de dor na palha de uma prisão borgonhesa...
Na verdade, tinha os mais belos olhos do mundo e como aquele nome, Fiora, era bonito!... E sem contar com aquela refeição, que era a melhor que ele já devorara em toda a sua vida!
Pelo seu lado, como verdadeiro filósofo e epicurista da boa vontade, Demétrios limitava-se a saborear aquele instante de quente cordialidade em redor de uma refeição agradável. Sentia-se satisfeito por Fiora ter começado a sua busca trágica com um sucesso e extraía dele os maiores augúrios para o que lhes restava cumprir, mesmo se o objectivo final, dali, parecesse desmedido: matar Carlos, o Temerário, talvez o homem mais poderoso da Europa e isso, segundo todas as probabilidades, no meio do exército que ele nunca abandonava desde que metera na cabeça tornar-se rei. Mas Demétrios acreditava firmemente em milagres e mais ainda na sua vontade inflexível...