Um dos panos bordados a dourado que estavam suspensos das paredes do oratório acabava de se erguer pela mão do Temerário, que avançou para Fiora, demasiado surpreendida com aquela súbita aparição para se lembrar de qualquer saudação. Philippe, esse, ficou muito corado e fez tenção de se aproximar do seu senhor, mas este afastou-o com um gesto.
Vai, Philippe! E confessa-te antes de defrontares Campobasso! Vejo-te mais tarde...
Monsenhor! Tenho de vos dizer... tenho de vos explicar...
Não há nada a explicar. Eu compreendi tudo. Deixa-me com ela!
Com um último olhar para Fiora, Philippe baixou a cabeça e abandonou a capela, cujas lajes ressoaram sob os seus sapatos de aço sem que o duque virasse, sequer, os olhos para ele. Carlos fixava a jovem com a expressão de quem acaba de encontrar a solução para um problema difícil. Aproximou-se dela e com gestos de grande ternura tirou os longos alfinetes que lhe seguravam o penteado. Quando os pesados cabelos caíram ao longo do delgado pescoço da jovem, ele recuou alguns passos:
Jean de Brévailles! Eu sabia que esse rosto pertencia ao meu passado, mas não o pensava tão longínquo! Foi há quantos anos?
Que recusastes as suas vidas a uma mãe desesperada? Dezoito e alguns dias. Eu nasci pouco tempo antes da sua morte. O que me espanta é que vós tenhais guardado a recordação?
No entanto, é verdade. Eu amava-o muito, antes de a imagem pura desse rapaz altivo e belo se ter afundado na vergonha e na desonra...
Por que razão, monsenhor, não acrescentais apenas a esses crimes o sangue que os vossos carrascos fizeram correr no velho cadafalso que eu vi em Dijon? Mas não: era preciso também a lama, a porcaria e a tumba ignóbil para onde, por vossa ordem, foram atirados e onde eu quase morri...
A ordem vinha do meu pai, não de mim.
Mas não fizestes nada para mudar fosse o que fosse! Se um homem, um daqueles mercadores que Vossa Senhoria desdenha com tanta altivez não estivesse presente para exercer uma piedade que devia ser prerrogativa do príncipe, eu teria ficado desfeita no fundo da mesma cloaca. Esse homem recolheu-me, alimentou-me, educou-me, amou-me... Quis fazer de mim sua filha e na última Primavera morreu depois de ser obrigado a casar-me com messire de Selongey, que soube do seu segredo...
O rosto moreno do príncipe ficou da cor do barro e o seu olhar inflamou-se:
Não me digais que Philippe, a lealdade, a rectidão e a honra em pessoa, que Philippe, cavaleiro do Tosão de Ouro ousou empregar tal meio?...
Para vos trazer o dinheiro que Lourenço de Médicis lhe recusou, teria sido capaz de pior ainda. Ele está ligado a vós de corpo e alma, apesar de isso me despedaçar o coração. E agora já sabeis por que razão ele só quis de mim uma noite, por que razão eu devia ficar a minha vida inteira em Florença sem nunca aparecer na Borgonha, para que ninguém soubesse que ele sujara o seu nome ao casar com a filha dos Brévailles, e vós menos do que ninguém... vós, o seu verdadeiro deus!
Calai-vos! Por São Jorge, ordeno-vos que vos caleis! Com as mãos nas orelhas, o duque foi afundar-se numa das duas cadeiras armoreadas que estavam de frente uma para a outra no coro. Ficou ali por um momento, respirando com dificuldade como um homem que sufoca e abrindo com um gesto brusco o colarinho do seu longo traje forrado de marta. Fechou os olhos e quando a respiração se tornou mais regular dardejou o seu olhar negro sobre Fiora:
Admitistes, ainda há pouco, que me detestáveis. A palavra é fraca, não é? Odiais-me?... e foi para me prejudicar que seduzistes Campobasso?
Ao ponto a que chegámos, monsenhor, seria absurdo mentir: eu só tenho uma palavra. Além disso, na verdade, não tenho grande vontade de viver.
Quereis morrer?
Isso resolveria muitas coisas...
Cabe-me a mim julgar... E agora, por favor, saí e deixai-me rezar! Preciso muito de rezar pela minha honra...
Após uma genuflexão que se destinava tanto ao duque como a Deus, Fiora abandonou o oratório, cuja porta fechou lentamente. Com lentidão suficiente para ver que o Temerário se deixara cair de joelhos no degrau do altar e metera a cabeça nas mãos. Pelo movimento dos ombros poder-se-ia supor que chorava...
Era quase meia-noite, no dia seguinte, quando Battista Colonna foi buscar Fiora ao seu quarto. Silenciosamente, iluminados pela lanterna que o pajem balançava numa mão, a jovem e o seu guia percorreram salas, galerias, desceram escadas com corrimão que pareciam intermináveis e, finalmente, desembocaram no recinto do palácio, no qual as árvores, despidas pelo Inverno, mostravam os seus ramos nus e retorcidos, acentuados por um ligeiro debrum branco. Caíra neve durante a noite, cobrindo o recinto com um manto delgado e sedoso.
Em redor do que era, na Primavera, um suave tapete de erva pintalgada de flores, onde as damas gostavam de se sentar para conversar, ouvir poesia ou dançar, estavam alguns homens envoltos em longos mantos negros, como a própria Fiora, que os faziam parecer fantasmas. Dois de entre eles estavam sentados em escabelos que para ali tinham sido trazidos: eram o duque Carlos e o núncio. Um terceiro banco, junto deste último, esperava Fiora, que tomou lugar nele após ter saudado silenciosamente o prelado, o príncipe e um homem de uns cinquenta anos, de porte altivo, que se mantinha de pé junto do Temerário e que ela sabia ser o seu meio-irmão, o grande bastardo Antoine, que, pelos seus feitos, elevara o seu nascimento ilegítimo à altura de uma lenda. Ninguém dizia nada...
No círculo de luz produzido pelos archotes transportados por três criados negros e talvez mudos apareceram os dois adversários. As suas armaduras caneladas, forjadas ambas pelos célebres Missaglia de Milão, tornavam-nos semelhantes e, à primeira vista, só eram reconhecíveis pelos que os acompanhavam: Mathieu de Frame para Selongey e Galeotto para Campobasso. Eram sensivelmente da mesma estatura. Cada um deles estava armado com uma espada e uma adaga...
Ao mesmo tempo, ambos se ajoelharam diante do duque e do núncio. O primeiro não se mexeu, mas quando o segundo ergueu a mão num gesto de bênção, Philippe tirou o grande elmo que lhe prendia a cabeça e atirou-o por terra, afirmando assim a sua intenção de combater sem protecção...
Quereis mesmo deixar-vos matar? perguntou o Temerário com uma voz surda onde se adivinhava uma certa angústia. Ponde o elmo!...
Com vossa permissão, monsenhor, não farei tal. Nós não estamos aqui para amolgar aço. Um de nós não sairá daqui vivo. Assim é mais fácil...
Como queirais, mas ficais em desvantagem... a menos que o vosso adversário demonstre o mesmo desdém pela vida?
Todos os olhares se viraram para Campobasso, que parecia uma estátua. A sua hesitação era palpável, mas ele virou os olhos para Fiora e leu no seu olhar tanto desprezo implacável que se decidiu e libertou, igualmente, a cabeça:
No fim de contas, por que não? disse ele com um encolher de ombros.
Em seguida, ambos se levantaram e se puseram às ordens do grande bastardo, que destinou um lugar para cada um, recuando depois e virando-se para o duque. Este fez um sinal de assentimento:
Em frente, meus senhores e que Deus decida qual das vossas causas é a melhor.
Como numa figura de dança bem ensaiada, as duas pesadas espadas ergueram-se ao mesmo tempo e Fiora enterrou as unhas nas palmas das mãos, o coração pequenino, numa angústia mortal. Fora das suas carapaças de ferro, as duas cabeças pareciam estranhamente frágeis. Se uma das espadas se abatesse sobre uma delas, era a morte certa, já que os dois homens se batiam com uma violência que estava na razão directa do ódio que votavam um ao outro. O choque das armas ecoava no jardim fechado, provocando, por vezes, faíscas. A sua habilidade era sensivelmente igual e o duelo arriscava-se a durar muito tempo. Selongey era, talvez, mais rápido e mais suave, mas Campobasso possuía mais experiência, porque não era a primeira vez que defrontava um homem em combate singular e, assim, era impossível prever qual dos dois, no final, venceria...