Os vossos sentimentos não me interessam para nada. Eu, o vosso príncipe, ordeno-vos, sob pena de desonra pública, que vos afasteis de uma mulher adúltera, nascida do incesto e, ainda por cima, espia do nosso querido primo de França.
Que ides fazer dela? Não ides fazer-lhe mal? Ela é tão jovem e já sofreu tanto!
Isso depende da vossa obediência. Daqui a pouco vou falar com o núncio, mas vós, preparai-vos para partir para a Sabóia, onde a duquesa Yolanda, invadida pela gente dos Cantões, pede por socorro. Anunciar-lhe-eis a nossa chegada próxima e ficareis junto dela até que eu vos chame. É preciso que antes do meio-dia tenhais abandonado Nancy com cinquenta lanças!
Monsenhor, por favor! Ela está inocente e vós não o ignorais.
Ignoro menos do que pensais. De qualquer maneira, este casamento deve ser dissolvido. Não me obrigueis, com a vossa obstinação, a fazê-la desaparecer! Sabei que a terei debaixo de olho para me assegurar da vossa obediência.
Alguma vez ela vos enganou? Deixai-me, ao menos, dizer-lhe adeus? Devo-lhe a vida!
Não... deixaríeis de poder partir e eu dei-vos uma ordem. Com a morte na alma, Philippe fez uma saudação e retirou-se com um último olhar para a parede de madeira por trás da qual repousava a única mulher que amara.. Dirigiu-se para a escadaria, mas, quando ia começar a descer, virou-se:
Uma palavra ainda, monsenhor. Desejo que todos os meus bens sejam vendidos. Fiora não tem nada e eu não suporto isso. Ao menos, fazei isso por mim!
A sério? E como vivereis, porque passais a ser vós que ficais sem nada?
Quando a vossa vitória for definitiva, meu príncipe, irei oferecer a minha espada ao duque de Veneza. Uma fortuna pode refazer-se nos azares da guerra... a menos que tudo acabe.
Saudando novamente com uma rigidez que traduzia bem a sua cólera contida, Selongey desapareceu, por fim, nas profundezas da escadaria, seguido pelos olhos do Temerário, que sorriu:
Isso é o que veremos... disse ele.
A casa do almotacé Georges Marqueiz, na rua Ville-Vieille, junto da igreja de Saint-Epvre, era uma das mais belas de Nancy e não sofrera os efeitos dos bombardeamentos. Foi para ali que nessa manhã transportaram Fiora ainda semi-inconsciente, para que pudesse receber os cuidados femininos impossíveis de assegurar no palácio transformado em caserna. Dame Nicole, a amável esposa do magistrado, aceitara dar ao novo senhor essa demonstração de boa vontade. Era uma mulher grande, cujos cabelos louros embranqueciam harmoniosamente e não era bela, mas tinha uns olhos castanhos calorosos e um sorriso encantador. A paciente não teve qualquer problema em lhe conquistar o coração e foi, também, conquistada de imediato.
Entretanto, o novo duque empregava todos os seus encantos e, quando queria, tinha muitos para seduzir os seus novos súbditos. Só se viam festas e divertimentos. Carlos desdobrava-se em liberdades, magnificências e carícias. Convocou, no seu novo palácio, os estados da Lorena, onde pronunciou um discurso memoráveclass="underline"
... Em breve vos apercebereis que eu procurava, por meio das armas, mais a vossa felicidade do que a minha disse ele àquela gente que tinha reduzido à fome e alguns a dormir em escombros. A Providência, que vos submeteu às minhas leis, reservou-vos, sem dúvida, a felicidade de viver sob a minha governação; com efeito, doravante, a vossa nação voltará a ser opulenta, feliz e tranquila e esta cidade, agora o centro dos meus estados, será o local da minha residência. Vou embelezá-la com um soberbo palácio, aumentá-la com um grande número de edifícios, estender as muralhas até Tombelaine e dar-lhe o mesmo brilho, sob o meu reinado, que Roma teve, outrora, sob o Império de Augusto...
Terminou exigindo uma fidelidade inviolável à sua pessoa e a assembleia, entusiasmada, nem sequer esperou que ele terminasse para lhe prestar vassalagem.
É qualquer coisa, ser a capital de um grande reino disse Nicole Marqueiz à sua pensionária. Quando vemos a riqueza de Bruges, Lille e Dijon, sonhamos...
Não gostais do vosso jovem duque?
É encantador, mas é uma criança, como diz monsenhor Carlos. Não se pode comparar com tal príncipe. Temos de viver com os tempos, que quereis?
Aliás, uma parte da nobreza Lorena congregou-se em redor do novo senhor. Aquilo chocou um pouco Fiora, que se restabelecia docemente e que começava a perguntar a si própria o que lhe aconteceria. Battista Colonna vinha todos os dias saber notícias dela e conversar. Fora ele que lhe dissera da partida de Philippe para a Sabóia e também a cena violenta que, por sua causa, opusera Campobasso ao duque Carlos. O condottiere, ao saber que Fiora pedira a anulação do seu casamento, ficou cheio de esperança e exigiu que lhe concedessem o título de noivo, reclamando ao mesmo tempo autorização para visitar todos os dias aquela que considerava como futura condessa de Campobasso.
Monsenhor contou Battista declarou-lhe que estava fora de questão o vosso casamento com ele, que, no que lhe dizia respeito, se opunha formalmente e que, aliás, tencionava conservar-vos como refém...
Como refém? Mas de quê? E porquê?
. Não sei dizer-vos, madonna. Foi o termo que monsenhor Carlos empregou. Campobasso bateu com a porta, jurando que nunca mais serviria um príncipe que não reconhecia o valor dos serviços prestados.
Partiu? Para onde?
Não ides acreditar: para Santiago de Compostela, em peregrinação!
Fiora desatou a rir. Campobasso de burel e chapéu de peregrino parecia-lhe uma imagem extremamente cómica.
E ele vai para Santiago com a sua tropa de mercenários? Vai ser um belo cortejo!
Creio que vai deixar a condotta no seu castelo de Pierrefort, o que o dispensará de a pagar. Dizem que já há algum tempo que reserva para si mesmo o dinheiro que tem a receber do duque. Também anunciou que conta visitar o duque da Bretanha, que seria um seu parente...
Seja o que for! suspirou Fiora, mas, intimamente, estava satisfeita.
Por um lado, desembaraçara-se de um homem que, agora, achava mais do que incómodo e por outro, no fim de contas, cumprira a sua missão na perfeição. Com efeito, conhecendo o condottierecomo o conhecia, o grande Santiago e o duque da Bretanha resumiam-se a uma única personagem: o Rei de França, junto do qual, certamente, Campobasso iria derramar as suas lágrimas. E fora esse o objectivo da sua missão. O que lhe permitia regozijar-se com o fim de uma aventura que achava pouco gloriosa...
Em contrapartida, aquela excelente notícia vinha acompanhada por outra... que o era menos. Pouco depois da sua entrada em Nancy, a jovem pedira ao núncio que lhe encontrassem Esteban, para que pudesse continuar ao seu serviço. Ora, o jovem Colonna disse-lhe que o castelhano não se encontrava em lado nenhum. Parecia que no dia seguinte à noite em que salvara Fiora do punhal de Virgínio, Esteban volatilizara-se. Nem o chefe da companhia onde fora alistado, nem os outros soldados, sabiam o que lhe acontecera... E Fiora, pela sua inquietação, compreendeu que, no seu humilde lugar, o castelhano ganhara uma pequena parte do seu coração, como Demétrios e todos aqueles que se tinham comportado com ela como verdadeiros amigos.
Aquele desaparecimento fazia com que se sentisse ainda mais desenraizada e a jovem não compreendia por que razão o duque a queria manter perto de si. Dissera-o apenas para se desembaraçar de Campobasso, ou aquela história de a manter como refém era a sério? Naquela cama estrangeira, naquela casa estrangeira, no coração de uma cidade e de um país estrangeiro, a jovem só desejava regressar a Paris para se juntar à sua querida Léonarde, cuja ausência lhe era cada vez mais penosa. O Natal aproximava-se e ela sentia-se apreensiva quanto a essa doce festa, na qual se reúnem aqueles que se amam. Para ela seria o Natal da solidão, o primeiro que iria viver sem o seu pai e sem Léonarde. Mesmo Philippe, essa sombra de marido, estava longe, perdido para sempre... Aos dezoito anos, o coração ainda não esqueceu as alegres ternuras da infância nem a doçura do lar paterno e Fiora chorou durante toda a noite, ela, cujo orgulho detestava as lágrimas, as cinzas ainda quentes do seu palácio incendiado e a sua felicidade destruída.