Monsenhor cortou Fiora perdoai-me por vos interromper, mas por que razão insistis em me levar... e sob que nome? Sou uma refém, e nesse caso porquê? Dissestes a Douglas Mortimer que eu era a condessa de Selongey, mas, no entanto, Vossa Senhoria sabe muito bem que eu pedi a anulação. Uma anulação que vós desejais, aliás, tanto como eu.
Segurando sempre na sua besta, o duque virou-se e olhou para a jovem com um olhar divertido:
No entanto, vós fostes muito bem-educada, donna Fiora! Não vos ensinaram que nunca se questiona um soberano? E eis que me fazeis uma série de perguntas?... Mas, excepcionalmente, vou responder-vos... na condição de me fazerdes um favor...
Um favor? O poderoso duque da Borgonha pede-me um favor?
Evidentemente que peço. Dir-vos-ei daqui a pouco o que desejo. Por agora, vejamos o que me pedistes... Sois uma refém? Num certo sentido, sim. Saber-vos em meu poder... e talvez em perigo, assegura-vos uma certa tranquilidade e a mim a obediência de dois homens...
Dois? Mas, Campobasso partiu, segundo me disseram.
Ele voltará. O importante é que Selongey e ele não passem o tempo a tentarem matar-se um ao outro e a procurar-vos aos quatro ventos. E agora falemos dessa anulação! O núncio foi ter com o imperador Frederico para me assegurar a sua neutralidade durante a guerra que vou empreender. Regulará essa questão quando voltar. Portanto, neste momento ainda tendes direito ao título de condessa de Selongey
Esse não é o meu sentimento e não quero usá-lo.
Como queirais. Nesse caso, será sob o vosso nome fiorentino que sereis amanhã apresentada ao embaixador. A vossa governanta viajará na mais confortável das suas carroças. Quanto a vós... e é aqui que entra o favor que vos quero pedir, seguireis a cavalo... se sabeis montar.
Ainda agora admitistes que eu tinha sido bem-educada, monsenhor.
Perfeito, mas, melhor ainda será se aceitardes vestir o traje que já deve estar no vosso quarto. Um traje... de rapaz.
Fiora desatou a rir:
Se é isso que desejais, monsenhor, é pouca coisa. Eu já possuo um traje masculino, graças ao qual viajei muito comodamente desde Florença.
Se estais acostumada, ainda melhor, mas desejo verdadeiramente ver-vos usar o que vos enviei. É essa... a razão profunda do desejo que tenho de vos manter junto de mim durante esta campanha...
Ao regressar a casa dos Marqueiz, Fiora encontrou, com efeito, alinhados em cima da sua cama, calções justos de seda negra, camisas finas bordadas e uma túnica de veludo de um belo vermelho-escuro, sobre a manga da qual estavam bordadas as armas de Borgonha e um lambel de prata com três pingentes, que a deixaram perplexa. Um capuz do mesmo veludo, com uma medalha de ouro representando São Jorge, uma pesada corrente de ouro, uma soberba manta de cavalo de fino tecido negro forrado com pele de marta e umas botas negras de gamo, forradas, acompanhavam aquele traje, mas a jovem só lhes prestou uma atenção distraída. Contemplava a túnica quando Léonarde entrou com os braços carregados de roupa que ia meter numa arca e Fiora pensou que talvez ela a pudesse esclarecer:
Vós sois borgonhesa disse ela. Deveis saber, portanto, que escudo é este? Monsenhor Carlos mandou-me estas roupas há pouco. Devo vesti-las e cavalgar perto dele.
Léonarde pegou na túnica, mas não respondeu de imediato. Com um dedo sonhador, seguiu o desenho complicado do bordado e, quando a deixou cair, Fiora teve a impressão que tinha empalidecido:
Então? disse ela com impaciência.
Já ninguém usa estas armas. Eram as de monsenhor Carlos quando ele era o conde de Charolais. O lambei de prata é a marca do filho mais velho... Suponho que, como seu escudeiro, Jean de Brévailles devia usá-las...
Ah!
Então era isso! No dia seguinte, quando pararam em Neufchâteau, onde o Temerário devia assumir o comando do exército, Fiora aproximou-se do príncipe enquanto ele mandava verificar os cascos do seu cavalo:
Eu obedeci-vos, monsenhor disse ela mas confesso que não compreendo o porquê este traje. Será... para acentuar uma semelhança?
É respondeu o duque em italiano. É-me muito caro, nesta guerra, ter a meu lado a imagem de um companheiro de outrora... de um companheiro de quem eu gostava muito.
De quem gostáveis? protestou Fiora indignada. Ousais dizer isso quando não fizestes nada para o salvar?
Eu não podia fazer nada. O crime não tinha perdão possível, porque ofendia a Deus, tanto como a humanidade. Era mil vezes preferível que a sua cabeça rolasse no cadafalso, do que enfiá-lo numa enxovia qualquer. Jean era meu amigo. Lemos Plutarco juntos, navegámos juntos ao largo de Gorcum, justámos juntos, bebemos e rimos juntos. Ele podia esperar da minha amizade uma grande posição, uma bela aliança e no entanto... no entanto continuou ele com um brusco lampejo de cólera partiu sem uma palavra sequer, rejeitou tudo, renegou a tudo pelo corpo de uma mulher que era sua irmã. Quando eu o cria puro, era como os outros, como o meu pai, que mal via uma saia ficava louco... pior do que os outros!
Não disse Fiora docemente. Ele foi apenas vítima de um amor impossível, proibido... mas que era, mesmo assim, amor.
Ele olhou-a com uma espécie de desvario nos olhos.
Achais?
Tenho a certeza. E vós também, monsenhor... senão, por que estaria eu junto de vós com estes trajes?
É verdade. Ele fez-me... muita falta. Vós dais-me a ilusão da sua presença, ainda por cima porque tendes mais ou menos a mesma idade que ele tinha então... Bem acrescentou ele em francês acabámos?
O ferrador-mor tinha terminado o seu trabalho. O duque subiu para a sela e juntou-se a trote ao grande bastardo, que o chamava. Fiora viu-o afastar-se sem conseguir compreender de onde lhe vinha aquele bizarro sentimento, tão próximo da piedade, que sentira subitamente...
A partir daí, ele mostrou-se pleno de gentileza, sobretudo durante os quinze dias que passaram em Besançon para que se juntassem ao exército algumas companhias do Franco Condado. Era, até, espantoso constatar que, a partir do dia em que soubera a verdade acerca do nascimento de Fiora, o duque mudara completamente de atitude para com ela. De impertinente e desdenhoso passara a ser quase amigável, quando o contrário teria sido normal. Por vezes, à noite, convidava-a a ir escutar os seus cantores e mesmo, tendo descoberto que ela sabia tocar alaúde e possuía uma bela voz, fazia-a cantar em dueto com Battista Colonna e chegava, até, a cantar com eles. Os únicos beneficiários daqueles concertos íntimos eram Antoine de Borgonha e o embaixador milanês. Fiora tornou-se rapidamente amiga de Jean-Pierre Paniga-rola. Era um homem de quarenta anos, com aquele rosto açanhado e meditativo que se vê em certas estátuas de santos mas deles só tinha a aparência. Fino, culto, sabendo jogar com o humor, era um observador atento da natureza humana e um! excelente diplomata. Escrevia quase todos os dias longas cartas ao duque de Milão, Galeazzo-Maria Sforza, seu senhor e Fiora (( descobriu rapidamente que ele conhecia o Temerário melhor; do que os seus próprios irmãos. Assim como parecia reconhecer-se na política sinuosa de Luís XI, junto do qual” desempenhara com sucesso funções de embaixador antes de a morte de Francesco Sforza, pai do actual duque, grande chefe de Estado e amigo do Rei de França, ter deitado por terra as alianças e virar Milão para Borgonha.,|
O rapaz falso, empanturrado de Platão, Sófocles e Hesíodo, encantava-o, ainda mais porque sabia perfeitamente que era uma mulher encantadora e apreciava as filhas de Eva como, amador esclarecido da beleza sob todas as suas formas. Mais pareceis um florentino disse-lhe Fiora uma noite, | rindo. Creio que tendes as suas qualidades e talvez os seus defeitos... Sinto-me bem como milanês, se bem que a nossa cidade não se possa comparar com a cidade da Flor-de-Lis Vermelha. No entanto, confesso que vos invejo o senhor Lourenço! Que inteligência! Que profundeza de visão! Não vejo que o Rei de França se lhe possa comparar...