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Eu não quero outras armas, monsenhor. Não saberia o que fazer delas. Apenas quero seguir-vos como o embaixador de Milão, que está sempre perto de vós.

Ele diz que é o melhor lugar para poder descrever os acontecimentos ao seu senhor. Para além disso, gosto de conversar com ele. Mas - acrescentou ele com uma voz de onde transparecia uma certa emoção confesso que a vossa presença me vai ser muito agradável. Mesmo que com isso prove que sou um egoísta insuportável... creio que vou precisar de amizade...

Os dias que se seguiram foram, de facto, muito sombrios. As consequências da derrota começaram a manifestar-se por meio de uma espécie de arrefecimento das relações diplomáticas. Apesar das cartas de Panigarola, o duque de Milão, ao qual se pediam novos mercenários, respondeu com vagas desculpas e não enviou nada. O velho Renato, que devia legar ao Temerário o seu condado da Provença e a sua coroa de Rei da Sicília e Jerusalém, fez volte-face e, pressionado pelos agentes de Luís XI, começou a interessar-se pelo neto, aquele jovem duque Renato, a quem tinham tirado a Lorena.

Entretanto, o duque Carlos sofria o contragolpe moral do que ele apelidava a sua vergonha e, após um curto período de agitação febril, caiu numa crise de melancolia. Fechou-se, não tolerando ninguém a seu lado. Permaneceu deitado, recusando comer, mas bebendo muito vinho, ele, que bebia tão pouco. Deixou de se lavar e no seu rosto vincado, onde a barba a crescer punha a sua sombra negra, os olhos sombrios ardiam com um fogo desesperado...

Ele é muito sujeito a estas crises de depressão confiou o milanês à jovem. É o seu sangue português. Em Portugal chamam a isto ”saudade”, mas confesso que esta é mais grave do que as outras. Temos de fazer qualquer coisa, mas o quê?

Ele gosta tanto de música! Por que não havemos de lhe levar os cantores da sua capela?

1 O papel de um embaixador era, então, exactamente o mesmo do correspondente de guerra de um jornal

Perdoai-me a imagem ousada, querida Fiora, mas só o diabo sabe onde esses estão!

Achais que será possível encontrar um alaúde, ou uma guitarra nesta cidade ventosa?

O castelo do defunto Hughes de Chalon estava mais bem provido do que Fiora pensava e nessa mesma noite, levando numa mão um alaúde e na outra Battista Colonna, instalou-se num canto, sentada numa arca, na pequena divisão que servia de antecâmara e após um curto conciliábulo com o seu jovem companheiro iniciou o prelúdio de uma canção francesa antiga, mas que se cantava um pouco por toda a Europa. Mantendo um olho inquieto na porta fechada, Battista começou a cantar:

O Rei Loys está sobre aponte Segurando afilha no regaço Ela pede-lhe um cavaleiro Que não valha seis dinheiros

Mas ainda aquela estrofe não tinha acabado e já a porta voava, mais do que se abria, pela mão furiosa do Temerário, que apareceu, titubeante, a boca retorcida e o olhar infectado de sangue:

Quem ousa aqui cantar um Rei Luís, seja ele qual for?

Fui eu, monsenhor, que pedi a Battista que cantasse essa melodia disse Fiora tranquilamente.

Aparentemente, pensais que tudo vos é permitido? Demonstrei-vos demasiada indulgência, muita fraqueza e...

É a vós mesmo que demonstrais demasiada fraqueza, monsenhor Quis apenas lembrar-vos que, enquanto vos deixais afundar numa extrema melancolia, o Rei de França, esse, continua a trabalhar.

A mão erguida, para bater, caiu sem força ao longo do corpo e, pouco a pouco, a ira abandonou o olhar perturbado que a jovem ousava fixar. O duque virou-se, por fim, para voltar para o seu quarto.

Que vão buscar os meus criados e que me preparem um banho! ordenou ele. Quanto a vós dois, continuai a cantar, mas outra coisa qualquer!

O concerto improvisado continuou até que Charles de Visen, o camareiro do duque, veio dizer aos jovens músicos que o seu senhor acabava de adormecer e que podiam parar. Já passava da meia-noite.

Fizestes um bom trabalho disse-lhes Panigarola, que viera instalar-se junto deles para os escutar. Aposto que a crise já passou e que amanhã monsenhor já terá reencontrado toda a sua actividade.

Na manhã seguinte, de facto, depois de ter emitido alguns despachos, dos quais um ordenava que se tirassem os sinos das igrejas da Borgonha e os levassem aos fundidores de canhões, o duque decidiu abandonar imediatamente Nozeroy e dirigir-se a Lausana, onde queria reunir um novo exército para cercar Berna, cavilha-mestra do seu desastre, Berna, onde o magistrado mais influente da cidade, Nicolas de Diesbach, liderava a facção francesa com o seu compadre Jost de Silinen, ambos amigos pessoais de Luís XI.

Enquanto não destruir Berna, as armas de Borgonha não reencontrarão o seu brilho declarou o Temerário e lançou-se na preparação minuciosa daquela nova campanha, na qual esperava restaurar a sua glória ofuscada.

O grande bastardo Antoine e o príncipe de Tarente, que tinham conseguido reagrupar uma parte dos fugitivos, instalaram o acampamento num grande planalto dominando o lago Léman, entre Romanet e Lê Mont. Ali erigiram a grande casa de madeira que abrigara o duque Carlos diante de Neuss e que, menos sumptuosa, sem dúvida, do que os pavilhões perdidos, oferecia o mesmo conforto. Em torno dessa construção acamparam as novas tropas que tinham conseguido: vinte e três mil vindos de Inglaterra, seis mil de Bolonha, seis mil de Liège e do Luxemburgo e, por fim, seis mil ”Saboianos”, que a própria duquesa Yolanda trouxe de Genebra ao seu aliado o duque de Borgonha.

A visão daquela bela mulher loura, que tinha mais ou menos a mesma idade do Temerário, espantou Fiora. Não se parecia nada com o seu irmão Luís XI e demonstrava uma feminilidade alegre e radiosa, que não era sem encanto. Ao vê-la avançar, sorridente e com as duas mãos estendidas para o seu aliado preferido, Fiora compreendeu, subitamente, por que razão aquela princesa francesa juntara as suas armas às do pior inimigo do seu irmão.

Ela ama-o, não ama? perguntou ela a Panigarola.

Nunca tive dúvidas, mas acho-a muito imprudente. O Rei Luís está em Lyon e está a reunir um exército junto dos seus fiéis do Delfinado, em Grenoble. Quanto ao meu senhor, o duque de Milão, sei que enviou mensageiros a Luís para lhe propor um acordo... e tentar apropriar-se da Sabóia.

Não deveríeis prevenir o duque Carlos?

Eu não recebi qualquer mandato oficial. Para além disso, se a questão é tomar a Sabóia, espantar-me-ia muito se o Rei nos deixasse fazê-lo. O que não impede, repito, que ache a bela duquesa pouco sensata...

Todavia, ela trouxe consigo a Primavera, que eclodiu subitamente com o irresistível ardor da natureza ao longo dos caminhos abertos pelas carroças de guerra e naquelas terras onde mais de uma aldeia fora arrasada. A erva voltava a nascer, verde e tenra, sobre as feridas da terra e no meio das ruínas. O lago, gigantesco espelho de um céu azul-claro, tinha ondas prateadas e nas suas margens as amendoeiras e as macieiras floresciam. O ar era leve, como, em pleno dia, as doçuras acariciantes de um sol talvez decidido a fazer esquecer o desastroso Outono e o rude Inverno. Em Lausana, que os males tinham poupado, a vida fervilhava nas ruas, assim como nos jardins, onde tudo desabrochava. Os embaixadores estrangeiros amontoavam-se com os seus séquitos, porque era impossível alojá-los no acampamento. Panigarola e os seus confrades venezianos, napolitanos, genoveses e outras gentes de Itália tinham eleito o albergue do Leão de Ouro como domicílio, o mais belo da cidade. As outras hospedarias e conventos estavam cheios e os mercadores afluíam, atraídos por tantas personagens nobres.

O ponto culminante foi a chegada normal do núncio Alessandro Nanni e do protonotário apostólico Hessler, ambos enviados do imperador para concluir o casamento do príncipe Maximiliano com a jovem Maria de Borgonha, herdeira dos Grandes Duques do Ocidente. A missa de Páscoa, celebrada na catedral de Lausana, no dia 14 de Abril, revestiu-se de um brilho excepcional.