Os dois cavaleiros tinham atravessado o acampamento, respondendo alegremente às saudações e sorrisos que recebiam. A jovem era popular no exército. Não porque fosse a única do seu sexo o Temerário, expulsara as prostitutas antes da partida de Lausana mas porque lhe admiravam a coragem, a gentileza e o voto que fizera de levar para o combate as armas do seu marido defunto, para que as águias de prata de Selongey pudessem continuar ao vento numa batalha.
Fiora e o seu companheiro, apesar dos avisos das sentinelas, tinham transposto a linha de defesa e chegavam a uma pequena elevação quando, subitamente, a chuva parou e o céu pareceu limpar. Sacudindo a cabeça molhada, a jovem, sorrindo, ia dizer qualquer coisa quando o embaixador exclamou:
Além! Por Deus... vamos ser varridos!
Os Suíços saíam das florestas vizinhas às centenas, aos milhares, os arcabuzes à frente e os chuços atrás. Corriam para o campo inimigo, que não os esperava. Simultaneamente, os dois amigos deram meia volta e galoparam na direcção das paliçadas gritando a plenos pulmões:
Alerta!... Estamos a ser atacados, alerta! O campo fechou-se por trás deles e antes mesmo que tivessem tido tempo de chegar à tenda ducal os canhões e os arcabuzes começaram a disparar, abafando o apelo lúgubre das trompas montanhesas que se fazia ouvir.
O Temerário estava com o seu médico quando Fiora e Panigarola irromperam pela tenda dentro.
Depressa! As minhas armas ordenou ele. E enquanto um escudeiro ia buscar o seu cavalo, o embaixador e Matteo de Clerici vestiram-lhe a armadura. Em seguida saíram todos da tenda, saltaram para as selas e correram sobre o inimigo à sombra do estandarte transportado por Jacques van der Maes. A batalha já estava no auge, as paliçadas destruídas e as linhas borgonhesas desfeitas. E de imediato, Fiora, espantada, viu-se no centro de um combate furioso, no qual, de repente, viu cair o estandarte de Borgonha e aquele que o transportava. A jovem fez recuar o seu cavalo para escapar àquela armadilha, sem sequer pensar em pegar na acha de armas que lhe pendia da sela. O animal, assustado, correu para o lago, para onde fugiam as tropas lombardas. Os mercenários sabiam determinar, infalivelmente, quando uma batalha estava perdida e esforçavam-se por preservar as suas vidas. O leão de ouro do elmo ducal estava invisível e até o próprio Panigarola desaparecera, levado, sem dúvida, pela vaga...
Atingido por uma flecha de besta, o cavalo de Fiora caiu. A jovem afastava-se penosamente quando viu um enorme suíço carregando sobre ela com um longo chuço. A morte estava ali, na sua frente e ela ficou horrorizada. Para não a ver, fechou os olhos e, subitamente, sentiu-se empurrada e atirada por terra. Um corpo caiu sobre o seu, que ela repeliu com um grito. Foi então que viu o suíço correr para uma outra vítima brandindo o seu chuço manchado de sangue... e reconheceu aquele que ele tinha perfurado no seu lugar:
Christopher. Oh! meu Deus, é Christophe!...
O peito do jovem estava coberto de sangue e um fio escuro começava a escorrer-lhe pelo canto dos lábios, mas male abriu os olhos e conseguiu sorrir.
Como vedes... tinha de me deixar matar... que era o que eu queria disse ele penosamente. Salvai-vos, Fiora! O exército... está em fuga, mas... a tenda do duque está próxima... Escondei-vos lá... e se vos encontrarem... dizei que sois uma mulher... É preciso ganhar tempo.
Não faleis! Eu vou-vos tirar daqui, arranjar qualquer coisa para vos tratar. Dir-se-ia que os Suíços estão a afastar-se...
Vão na perseguição do duque e eu... já não... preciso... de nada. A... a... amo-vos...
Foram as suas últimas palavras. A cabeça de Christophe descaiu-lhe sobre o ombro. Fiora, desolada, fechou docemente os olhos cinzentos, semelhantes aos seus, que a morte não tinha fechado e em seguida pousou um beijo ligeiro na boca entreaberta.
Querendo ver como estavam as coisas, ela viu tudo embaciado e reparou que chorava. A jovem enxugou os olhos com as costas da mão, avistou uma espada abandonada na erva e agarrou-a. A grande tenda vermelha o duque mandara fazer uma quase tão bela como a que perdera em Grandson não estava longe, de facto e o caminho parecia livre. Levantando-se, ia começar a correr na direcção daquele abrigo quando um homem se ergueu na sua frente, brandindo uma maça de armas. A jovem esquivou-se ao golpe baixando-se e, quase por instinto, o seu braço armado estendeu-se com uma força duplicada pelo medo e pela raiva. A espada afundou-se no ventre do soldado, que caiu com um estertor de dor. Então, abandonando a arma, Fiora correu até ao pavilhão ducal, enfiou-se lá dentro e deixou-se cair, soluçando, sobre a cama de lençóis amarrotados que mais ninguém faria.
Quanto tempo durou aquela espécie de crise que a sacudiu dos pés à cabeça quando percebeu que tinha morto um homem? Uma hora, ou alguns minutos? Sentia-se incapaz de analisar e aquilo teria durado ainda mais tempo se uma mão, que se pousou no seu ombro e a sacudiu sem qualquer cerimónia, não a tivesse arrancado à sua prostração:
Chega de choro! disse uma voz rude. Levantai-vos e dizei quem sois...
Ao ouvir o som daquela voz a jovem sobressaltou-se e pôs-se de pé num salto, ficando de frente para Demétrios que olhou para ela, espantado.
Não é possível! exalou ela, hesitando em reconhecer o grego naquele guerreiro de capacete e coberto por uma túnica de couro reforçada com placas de metal. Não podes ser... tu?
Por que não? disse ele com dureza. Será mais espantoso do que encontrar-te nesta tenda? Assim como os rumores que ouvimos, serão eles verdadeiros? Como é possível acreditar em semelhante coisa?
Por favor... De que estás a falar? exclamou ela, a alegria do reencontro cortada pela severidade do tom e mais ainda pela do olhar. Que coisa é essa impossível de acreditar?
Que tu sejas a amante do Temerário! Mas tenho de me render à evidência, já que te encontro a chorar na sua cama...
Eu? Amante do duque Carlos? Quem disse isso?
Toda a gente. Fala-se muito, nesta região da Europa, de uma rapariga disfarçada de rapaz que segue o borgonhês por toda a parte, sem a qual ele não pode passar e que tem acesso à sua tenda, tanto de dia como de noite e que...
Chega! Conheces-me assim tão mal que acredites em tal vilania? Os que espalham esses boatos demonstram, em todo o caso, o seguinte: Não conhecem, absolutamente, o duque. Ele nunca, com excepção da sua duquesa, toca numa mulher. Nunca teve qualquer amante. Os deboches do seu pai inspiram-lhe horror.
Nesse caso, que fazes tu junto dele?
Não achas que fazes demasiadas perguntas? É a minha vez de te perguntar o que fazes aqui! As últimas notícias, que me foram dadas por Léonarde, diziam que tu tinhas ganho uma enorme amizade por Renato da Lorena, a ponto de não te afastares dele. E agora, eis-te na Suíça?
Por uma excelente razão: o duque Renato está aqui. Ele acaba de carregar sobre os Borgonheses em fuga à cabeça de um corpo de cavalaria alsaciana e, como habitualmente, eu estava com ele. Estará aqui dentro de instantes.
O que é que tu queres que eu pense? Ah, já sei! Parece que é um rapaz com muito futuro? Pressentiste nele, talvez, um grande capitão? O menos que se pode dizer é que não parece. Quando pressente a derrota corre para debaixo das saias da mãe com o pretexto de que vai em busca de reforços... e nunca mais ninguém o vê. Entretanto, os Lorenos suportaram o peso da guerra... O duque Carlos, que o apelida de Menino, tem razão no que diz e, se bem compreendo, tu tornaste-te na sua ama?