Demétrios desatou a rir com um riso que tinha algo de feroz.
É fácil acusar quando não temos defesa, não é? Já te esqueceste do nosso juramento de sangue?
Não, não esqueci e cumpri a missão que o Rei Luís me confiou. Afastei Campobasso da facção borgonhesa e Deus sabe o que isso me custou! Deus e Esteban, aliás, porque suponho que ele se juntou a ti?
Sim. Ele falou-me, de facto, no que tu tiveste de suportar...
Sem ele eu estaria morta, mas os perigos que corri não te impediram de dormir. Estive quase a ser executada pelo duque e quase morri trespassada pela espada de Campobasso... e, enfim, perdi... Philippe... que acabava de encontrar e é para tentar juntar-me a ele e também para que as suas cores flutuem ao vento em volta do estandarte de Borgonha, que estou aqui.
As lágrimas que lhe enrouqueciam a voz aumentaram a sua cólera, porque lhe custava mostrar a sua fraqueza àquele homem. Acreditara-o seu amigo, mas bastara aquele miserável duquesinho loreno passar entre eles para o transformar num inimigo impiedoso.
Bravo! Vejo que te transformaste numa boa borgonhesa, numa amiga verdadeira desse príncipe cuja morte juraste!
Eu não sou amiga dele, mas ele portou-se muito bem comigo. Tentou apaziguar-me a dor e até me confessou por que razão não salvou Jean de Brévailles, de quem, entretanto, gostava muito...
E tu acreditaste nele, claro. É tão fácil quando queremos acreditar!
E também é fácil negar a evidência quando queremos permanecer cegos! Ainda estou à espera de saber o que fizeste, tu, para manter o juramento?
Mais do que pensas. Sei que Renato II foi designado pelo destino para vencer o Temerário e é isso que ele acaba de fazer hoje... O teu duque está em fuga e faço-te notar que te abandonou.
Se o teu venceu, não foi o único. Direi mesmo que todo o mérito cabe aos Suíços. Mas, Demétrios, se queres tanto a morte de Carlos de Borgonha, por que não procuras aproximar-te dele? Como médico estrangeiro ainda seria mais fácil, já que ele está doente. Vai lá e mata-o!... Não? Isso não te diz nada? Evidentemente, não sairias de lá vivo e algo me diz que queres muito à tua vida.
Não mais do que antes, mas ainda tenho coisas a fazer. Pelo contrário, a ti ser-te-ia fácil livrar esta terra de um homem que a esmaga com o seu orgulho e loucura. Com isto, por exemplo...
Do saco que lhe pendia da cintura, Demétrios tirou um pequeno frasco que fez cintilar à luz de um candelabro:
Três gotas e o Temerário deixará de poder massacrar o seu povo, a começar pelos seus soldados! Estás a ouvir estes gritos? Os Suíços cumpriram a sua palavra e degolam os que lhes passam pelas mãos. Ele teria feito o mesmo se tivesse vencido. Não passa de um monstro sedento de sangue...
Poderia continuar a falar daquele modo durante muito tempo, mas Fiora não o escutava. Olhava para o pequeno frasco na ponta dos dedos do grego com repugnância.
Não. Nunca farás de mim uma envenenadora! Disse-to em Florença, o veneno é uma arma ignóbil.
Seja! suspirou Demétrios, pousando o minúsculo frasco sobre uma mesa. Emprega o meio que te agradar, mas fica sabendo: só te devolverei o teu marido quando o Temerário tiver deixado de viver.
O meu marido?... Philippe? Philippe está vivo?
Sim. Eu também estava em Grandson sem o duque Renato, porém. Encontrei Selongey no campo de batalha. Tratei-o... e escondi-o num lugar que tu não serás capaz de encontrar sem a minha ajuda.
Philippe vivo!... Meu Deus! Também és capaz, por vezes, de ouvir uma oração e de a satisfazer?
Deixa Deus fora disto! O tempo urge. É preciso que o Temerário desapareça, entendes?... Podes pensar de mim o que quiseres, mas és a única que pode aproximar-se dele. Portanto, age! Ele tem de morrer...
Bruscamente, Fiora recuperou todo o seu sangue-frio. Levantou-se, altiva e olhou de alto a baixo aquele que acreditara, durante tanto tempo, ser seu amigo:
Que homem és tu, Demétrios Lascaris, para ousar empregar um tal meio? O teu ódio cego não te permite julgar com sensatez e agora eu tenho horror ao sangue que misturaste com o meu...
Esse Selongey é-te muito querido, apesar de saberes muito bem que te abandonou. Recorda-te da jovem...
A viúva do irmão mais velho, morto há dez anos. Se bem que isso não te diga respeito. Prossegue o teu caminho e deixa-me seguir o meu.
Nesse instante entraram na tenda dois homens. Um era Panigarola, coberto de lama e sangue e o outro era um jovem louro e esguio, de olhos azuis, trajando sobre a armadura uma túnica dourada com uma dupla cruz branca e cujas mangas eram brancas e vermelhas. Ao ver Demétrios pôr um joelho em terra, Fiora compreendeu que era o duque Renato...
Ela está aqui! exclamou o milanês, correndo para segurar na mão de Fiora. Monsenhor, é esta a jovem de quem vos falei e, graças a Deus, está viva!
Como vedes, estou encantado, messire Panigarola. Na verdade, seria uma pena se tivesse acontecido alguma infelicidade a esta dama tão bela... e compreendo por que razão correstes tantos riscos para a encontrar...
Os riscos não foram assim tão grandes, monsenhor, a partir do momento em que reconheci a vossa bandeira. Eu sabia que respeitaríeis a minha.
Onde iríamos parar se nos puséssemos a exterminar os diplomatas? Ide em paz. O meu porta-bandeira e mais quatro cavaleiros vão levar-vos daqui... Saúdo-vos, madame e espero sinceramente voltar a encontrar-vos... em circunstâncias menos trágicas...
Sem responder, Fiora dobrou o joelho diante de Renato e saiu sem um único olhar para Demétrios...
Mas o que teve de atravessar em seguida fez com que quase vomitasse o próprio coração. Os infelizes que tentavam fugir para o lago eram degolados, espancados, atravessados por flechas. Era uma visão terrível, um inferno abominável e a jovem acabou por fechar os olhos com força e tapar as orelhas com as mãos para não ouvir os gritos e os estertores de agonia, deixando que Pannigarola, que agarrara as rédeas do seu cavalo, a conduzisse. Só quando sentiu enfraquecerem aqueles queixumes assustadores é que compreendeu que se tinham afastado do campo de morte.
Já podeis abrir os olhos disse calmamente o milanês estamos sós...
A jovem obedeceu e esforçou-se por lhe sorrir, mas esse esforço meritório não teve grande resultado.
Como hei-de agradecer-vos? Voltastes a este inferno para me vir buscar?
Era o único a poder fazê-lo. O duque conseguiu fugir com algumas lanças. Nunca o vi tão perdido, quase desvairado... Creio que se teria deixado matar se vários cavaleiros não o tivessem arrastado... Mas, pensemos em vós! Se vos sentis melhor, Fiora, vamos para Lausana rapidamente. A acreditar nos rumores que me chegaram, os Suíços, depois desta vitória, vão cair sobre a cidade para a porem a saque... É preciso ir buscar donna Léonarde e o jovem Battista.
Fiora lançou-lhe um olhar aterrorizado e lançou o seu cavalo a galope. Era o que faltava, matarem-lhe a sua querida Léonarde!...
CAPÍTULO XIV
O PÂNTANO GELADO.
Três dias mais tarde, após uma viagem movimentada que os obrigara a seguir primeiro na direcção de Orbe para evitar os bandos descontrolados e ferozes que se dirigiam para Lausana, Panigarola, Fiora, Léonarde e Battista chegaram à cidade montanhesa de Saint-Claude, pitorescamente agarrada a escarpas rochosas sobre a confluência do Bienne e do Tacon. A cidade, composta sobretudo por artistas e canteiros agrupados em torno de uma sólida corporação, comprimia-se em volta dos dois rios e da grande abadia beneditina, da qual fora abade, no século xii, Saint Claude, fazedor de milagres. Foram as portas desse mosteiro que se abriram para o embaixador de Milão e os seus companheiros.