Mais grave ainda: o duque Renato II, cuja avó, a velha princesa de Vaudémont, acabava de morrer legando-lhe uma fortuna, recrutara mercenários suíços e alsacianos, conseguira que a cidade de Estrasburgo lhe emprestasse a sua artilharia e acabava de reconquistar Lunéville. Dizia-se que se dirigia para Nancy para expulsar os Borgonheses.
Aquela notícia fez bater com mais força o coração de Fiora. Sabia onde estava Demétrios. Agora, era preciso arranjar os meios de ir ter com ele o mais depressa possível.
Isso não vai ser fácil disse Léonarde, preocupada. Sair deste castelo mais fechado do que o cofre de um mercador e deste campo em redor, que, a cada dia que passa, fica maior, põe-nos um problema difícil de resolver, porque, com o grande amor que o duque tem por vós e mesmo que vós ainda não vos tenhais dado conta estais mais vigiada do que se fosseis sua noiva...
De qualquer maneira, temos de arranjar um meio. Não vou deixar que me levem para lá dos montes, quando é para Nancy que quero ir!
Aquele último receio foi rapidamente apagado. Uma vez passada a cólera, o duque Carlos mudou os seus planos: estava fora de questão ir sobre os Cantões, com os quais, aliás, se iniciavam tímidas negociações. Doravante era na direcção norte que era preciso marchar, para expulsar definitivamente da Lorena os homens de Renato II, porque a Lorena era o fio que ligava as duas Borgonhas, o elo indispensável, conquistado com demasiado carinho, para que se pudesse permitir que se rompesse...
As coisas estão simplificadas comentou Léonarde.. Não sabíamos como havíamos de ir para Nancy e eis que se propõem conduzir-nos até lá. O exército está a reunir-se. Partiremos em breve...
De facto, o vasto planalto povoava-se quase a olhos vistos. A Borgonha cumpria a sua promessa e enviava tropas e armas. Viram-se chegar grupos de Pícaros, Valões, Luxemburgueses e também alguns ingleses, conseguidos a custo ao Rei Eduardo pela duquesa Marguerite. Galeotto juntou a um dos primeiros as suas lanças e os seus carpinteiros. Os soldados instalavam-se nas aldeias e terreolas e os seus habitantes sustinham a respiração a despeito das ordens severas do Temerário no que tocava ao roubo, à violação ou à pilhagem. Outros acampavam directamente sob a tenda e as suas fogueiras para cozinhar, chegada a noite, ardiam em turbilhão sob o vento vindo das montanhas. O castelo enchia-se de senhores e capitães, que ali faziam grande barulho. Ele eram colóquios e conciliábulos, assim como algumas bebedeiras, é bom que se diga e Fiora nunca abandonava o seu quarto, onde Panigarola ia muitas vezes refugiar-se quando estava cansado dos relatos de feitos guerreiros. A jovem quase nunca via o duque, e não se queixava. O tempo não estava para canções: o barulho das armas substituíra-as e enchia tudo. Até as próprias aves e animais dos bosques fugiam para as montanhas... E então, uma manhã, Panigarola foi despedir-se de Fiora.
Ao vê-lo aparecer com botas de pele e a manta de cavalo debaixo do braço, a jovem compreendeu o que era antes mesmo de ele abrir a boca:
Não me digais que ides partir?
É isso mesmo. O duque acaba de me dispensar, aliás com muito boas maneiras, coisa que eu não esperava, dadas as circunstâncias...
Milão e Borgonha já não são aliados?
Não. E espanta-me que ainda não tenhamos entrado em guerra. Monsenhor teve a amabilidade de me dizer que lamentava a minha partida...
Não é o único. Eu... sinto-me desolada por vos perder, meu amigo. Voltaremos a ver-nos?
Por que não? Milão não é assim tão longe e eu quero que saibais que a minha casa estará sempre pronta para vos acolher.
Salvo se não estiverdes lá. Quem sabe se não vos enviam amanhã para junto do Grande Khan?
Não me parece: a língua é-me desconhecida. Mas... também vim para vos comunicar a notícia que acabo de saber por Galeotto: Campobasso está de regresso!
Para aqui?
Talvez não. Mas escreveu ao duque propondo-lhe regressar ao serviço com a sua condotta. Isso representa perto de dois mil homens e a sua proposta foi acolhida com satisfação.
Fiora juntou-se a Léonarde, que cosia sentada à janela.
Ouvistes? Temos de nos preparar para partir rapidamente. Esperai-me um momento, meu amigo, partiremos juntos!...
A jovem precipitou-se para uma arca, que abriu.
Peço-vos, não façais nada. Eu previ a vossa reacção e pedi autorização para vos levar, mas monsenhor recusa formalmente deixar-vos partir.
Deixando cair a cobertura, Fiora hesitou um instante e dirigiu-se para a porta:
A mim não recusará. Não quero ficar aqui, no meio de todos estes homens de armas cujos olhares me desagradam, à espera que Campobasso se apodere de novo de mim.
Não, Fiora! Será inútil. Ainda ficais prisioneira.
Mas, enfim, ainda há pouco vos propúnheis ajudar-me a fugir?
De facto!... Mas não sabia tudo. Aliás, não sabia nada. Nunca o duque Carlos permitirá que vos afasteis dele. E, se fugis, sabeis quais serão as consequências?
É insensato! exclamou Léonarde. Isso não é amor, é raiva.
Nem uma coisa, nem outra, donna Léonarde... É superstição. Quando estivemos em Besançon, no Inverno passado, um rabi, versado na cabala, disse a monsenhor que a morte não o levaria enquanto vos tivesse junto dele, Fiora. É por isso que ele vos reconhece como a senhora de Selongey, porque isso faz de vós uma borgonhesa; é por isso que ele vos quer na sua corte quando a guerra acabar; é por isso, enfim, que Battista deve morrer, se vós fugirdes. Tornastes-vos no seu anjo-da-guarda. Fiora, a princípio estupefacta, desatou, bruscamente, a rir:
Eu, anjo-da-guarda dele? Eu, que ao deixar Florença só pensava matá-lo?... Isto faz-me regressar a essa primeira ideia
Não o tenteis, porque não conseguireis. A lâmina do punhal partir-se-á, o veneno não fará efeito...
Mas, enfim, vós acreditais nessas loucuras, vós, tão lógico e tão filósofo? Quem vos disse isso? O duque?
Não. O grande bastardo, a quem pedi que intercedesse por vós e que pediu, há muito tempo, a vossa liberdade.
Será preciso, então, que Battista volte para casa. No fim de contas ele é romano, não pertence à casa de Borgonha. O senhor dele não é o conde de Celano?
Que desapareceu em Grandson sem sabermos o que lhe aconteceu. Mas, peço-vos, acalmai-vos! Ainda nada está perdido. Quando sair daqui, vou parar em Saint-Claude para esperar por monsenhor Nanni. O núncio espera concluir a paz entre a Borgonha e os Cantões. O Papa e o imperador também estão nas negociações e ele quer encontrar-se comigo. Juntos, veremos o que podemos fazer. O jovem Colonna poderá ser chamado a Roma... para um luto familiar, por exemplo?
Esperais que o núncio diga uma mentira dessas, tão grande? A despeito da gravidade da situação, Panigarola desatou a rir.
Minha querida filha, na política, como na diplomacia, a mentira e a verdade são noções abstractas. Só o resultado conta... e monsenhor Nanni é um dos melhores diplomatas que eu conheço. Portanto, tende paciência!... e permiti que um velho amigo vos abrace, porque vos tornastes muito cara. Passai bem, donna Léonarde!
Farei os possíveis, messire disse esta com uma pequena reverência e desejo o mesmo a Vossa Excelência!
Chegada a noite, o duque Carlos, para surpresa de Fiora, fez-se anunciar. E ela constatou, ao primeiro olhar, que ele estava triste.
Venho pedir-vos que me deis de jantar, donna Fiora disse ele, segurando-lhe na mão para a erguer da reverência. E, a menos que isso vos contrarie, será servido aqui.
Monsenhor não sabe que está em sua casa?
Não sejais tão cerimoniosa. Deveis estar tão triste como eu. Não perdemos ambos um amigo?
Não creio. Vós perdestes um embaixador, não o amigo que ele continua, certamente, a ser.
Pode ser que tenhais razão, mas por estas defecções é que eu vejo como a glória da Borgonha está ofuscada. Precisamos de uma grande vitória para lhe restituir o brilho. Felizmente, vós ficais.