Todos os fins de tarde, da janela do seu quarto, Fiora via o dia cair sobre Nancy e o desejo de nela entrar era cada vez mais ardente. Pensava que aquelas muralhas martirizadas pelo tiro dos canhões, mas que continuavam de pé, mantinham no seu interior o homem que amava. Mas, como entrar sem experimentar o fogo dos defensores ou fazer-se matar pelos assaltantes? E estremecia quando ao fim do dia o Sol vermelho de Outono vestia de chamas e sangue os baluartes...
A cidade defendia-se com unhas e dentes. Os ataques incessantes atormentavam o campo borgonhês, que, de cada vez, deixava lá homens. O bastardo de Vaudémont, que a lenda começava a aureolar, conseguira mesmo, na noite de Todos-os-Santos, aproximar-se do quartel-general dos assaltantes e a casa do Temerário escapara à justa a um incêndio. Vaudémont desaparecera na noite com os seus homens sem perder um único, mas a sua passagem deixara o solo juncado de cadáveres.
E então o Inverno, com um mês de avanço, chegou como uma tempestade e tratou todos de igual modo, sepultando sob o seu manto de neve e bruma sitiados e sitiantes. Numa noite tudo ficou branco; os ribeiros e o lago de Saint-Jean gelaram e até o próprio Meurthe se pôs a arrastar pedaços de gelo. A fome e os seus sofrimentos instalaram-se em Nancy e o frio, a doença e o medo no campo dos Borgonheses. Cada dia que nascia revelava deserções.
Inquieto, Antoine de Borgonha tentou fazer com que o seu irmão ouvisse a voz da razão:
Por que vos obstinais nesta campanha de Inverno? Perdemos soldados todos os dias. Levantemos o cerco e vamos abrigar-nos no Luxemburgo. Regressaremos na Primavera...
Isso era dar tempo a que Renato refizesse o exército e que Nancy se reabastecesse. Não, meu irmão. Decidi passar o Natal nesta cidade danada, da qual queria fazer a capital de um império. Eles não aguentam muito mais tempo. Já comeram os cavalos. Agora, comem os cães, os gatos e até os ratos...
O que era verdade. Nancy suportava corajosamente o seu martírio, queimava os seus móveis para ter um pouco menos de frio e tentava saídas desesperadas na esperança de recuperar um pouco de comida... Os Borgonheses tinham menos falta porque controlavam, a norte da cidade, a estrada de Metz e do Luxemburgo, por onde lhes vinha o reabastecimento. O tesouro de guerra, de facto, encontrava-se no Luxemburgo. Campobasso, Chimay e Nassau vigiavam aquela estrada com ordens formais de nem sequer se mexerem. Era o duque que, todas as manhãs, ia visitar os capitães e o avanço dos diferentes trabalhos.
Fiora gostava daquelas disposições: mantinham Campobasso afastado do campo da Comendadoria e permitia-lhe sair sem receio de maus encontros. Porque na casa de madeira a atmosfera, fumarenta por causa das braseiras, era-lhe difícil de suportar. ”Ainda acabamos de sair de lá fumadas como os presuntos”, resmungava Léonarde e todos os dias, na companhia de Battista, a jovem obrigava-se a um curto passeio em redor do lago de Saint-Jean ou até ao bosque de Saurupt. Foi assim que um dia, aproveitando um raríssimo raio de sol e avançando até à orla do bosque, viu um lenhador a desbastar uma árvore e a carregar uma espécie de trenó com lenha. A jovem sentiu uma vontade súbita de lhe falar e aproximou-se:
Sois daqui, bom homem? Porém, não há muitas casas por aqui.
Moro bastante longe, mas com este tempo danado é preciso encontrar madeira para nos aquecermos, não?
O homem endireitou-se, esfregou os rins e do alto da sua grande estatura olhou para a jovem com uns olhos azuis e divertidos. Apesar da barba e do bigode enormes, Fiora, estupefacta, reconheceu Douglas Mortimer... Deitando em volta um olhar rápido para ver onde estava Battista, viu-o a esticar o arco, que trazia sempre consigo por precaução, na direcção de um bando de corvos.
Que fazeis aqui? sussurrou ela.
Trabalho, como vedes. Não é fácil encontrar-vos, pois não? O Rei está preocupado convosco e pergunta a si próprio se não vos tornastes borgonhesa? Falaram-lhe de uma jovem que não abandona o Temerário. Sois amante dele?
Não digais asneiras: o duque não tem nenhuma amante. Eu sou, para ele, uma espécie de talismã.
A figura barbuda abriu-se num largo sorriso:
Se estivestes em Grandson e em Morat, sois, de facto, um grande talismã.
Predisseram-lhe que a morte se manteria afastada enquanto eu estivesse com ele...
Estou a ver. Mas vós tendes pernas e uma coisa que se chama inteligência. Por que razão ainda não escapastes?
Vede aquele rapaz que está a atirar aos corvos! Se eu fugir, ele será executado.
Ah!... De facto, é um problema que tentaremos resolver. Mas, foi uma sorte terdes vindo até aqui. Há vários dias que vou ao acampamento tentar vender lenha ou lebres, como ontem. Queria que se habituassem a ver-me. Aliás, vou continuar, mas quero dizer-vos o seguinte: o Rei quer que eu vos tire daqui, porque o perigo está a aumentar e ele teme por vós...
Agradecei-lhe, mas, para já, não tenho nada a temer. O que eu quero saber é onde está o duque Renato? Sabeis?
Ainda está bastante longe, creio, mas, antes do fim do ano, está aqui. O perigo é esse.
Eu não o temo. Podeis dizer-me se Demétrios ainda está com ele?
O médico grego? Nunca o abandona. Dizei-me: não achais que já conversámos de mais?
Só mais uma pergunta: por que razão regressou Campobasso?
Pelo dinheiro... e por vós. Tomai cuidado! O tipo é um pedinte, conseguiu até enfastiar o Rei, que o mandou embora. Há-de desertar quando chegar a hora. O Rei está-vos reconhecido pelo que fizestes, mas teme que vos transformeis em vítima. Campobasso deseja-vos seja a que preço for, portanto, agora que já nos vimos, não saiais do vosso alojamento. Vou tentar olhar por vós, mas, de qualquer maneira, não será por muito tempo.
Mortimer recomeçara, há já uns momentos, o seu trabalho. Battista, que matara dois corvos, aproximou-se com a sua caça. Fiora felicitou-o pela sua habilidade.
Ides comê-los? Dizem que são muito duros.
Não se os cozermos durante muito tempo, mas eu estava a pensar oferecê-los a este pobre homem. A caça é rara, nesta estação.
O falso lenhador aceitou o presente com uma gratidão enternecedora e um sotaque local, que divertiu tanto Fiora que a jovem preferiu afastar-se rapidamente com o pajem, perseguida pelas bênçãos do homem... Aquela presença dava prazer à jovem e inquietava-a, ao mesmo tempo. Se Mortimer fosse apanhado, seria enforcado como espião, o mesmo que acontecera a um mordomo do duque Renato, um fidalgo provençal chamado Suffren de Baschi, que fora descoberto quando tentava fazer entrar pólvora e carne na cidade. Uma curiosa história, aliás! O duque Carlos, num primeiro assomo de cólera, ordenara que ele fosse enforcado. O grande bastardo, o sire de Chimay e Campobasso tinham pedido que ele lhe poupasse a vida, mas enquanto os dois primeiros perseguiam o príncipe com as suas súplicas, Campobasso mandara enforcá-lo imediatamente. O infeliz gritara aos seus advogados ”Dizei ao duque que me conceda um instante a sós. Ele dar-me-á um ducado se souber o que eu tenho para dizer...” Do que Mortimer lhe dissera, Fiora tirou uma conclusão simples: Suffren sabia que o condottiere era um traidor e era isso que ele queria revelar ao duque.
Nos dias que se seguiram, Fiora não abandonou o seu alojamento e fez companhia a Léonarde, que tinha apanhado uma constipação ao ajudar Matteo de Clerici a tratar dos doentes. Houve uma grande assembleia em honra do protonotário Hessler, que trouxe uma carta e algumas jóias da parte do príncipe Maximiliano para a sua noiva Maria de Borgonha. O duque e os seus capitães esforçaram-se por lhe fazer uma boa recepção apesar dos poucos meios de que dispunham. Fiora, essa, absteve-se de aparecer porque tinha avistado Campobasso entre eles. Além disso, tivera esperança que monsenhor Nanni acompanhasse, como habitualmente, o abade de Xanten, mas Hessler estava só e não havia notícias de Panigarola. A jovem pensou que o núncio, dada a sua idade, talvez já tivesse morrido?