E depois chegou o Natal, o mais trágico jamais vivido pelos beligerantes. Nancy morria de fome e demolia os vigamentos das casas para obter um pouco de calor que não o dos incêndios acesos pela artilharia borgonhesa e que a água gelada impedia que fossem apagados, mas no campo a situação não
1 Um antepassado do bailio de Suffren
era melhor. Cada dia que passava tinha o seu custo em homens. O frio impiedoso paralisava-os, gelava-lhes os pés e matava-os às centenas. As deserções atingiam números alarmantes e naquela noite de Natal, que prometera ser de festa no palácio dos duques da Lorena, o duque Carlos, depois de ter ouvido missa, errou até de madrugada por entre os seus soldados na companhia do seu médico e do grande bastardo, esforçando-se por reconfortá-los, distribuindo vinho, aguardente, medicamentos e repreendendo os capitães por, segundo ele, não saberem cuidar dos seus homens, mantendo-os, ao menos, vivos:
É preciso ser-vos muito fiel, monsenhor lançou-lhe Galeotto. Celebra-se por toda a Europa a vinda do Menino Jesus e nós morremos aqui de miséria e doença em frente desta puta desta cidade que prefere deixar-se destruir até à última pedra a render-se. Não seria melhor partir, antes que a morte nos leve a todos?
Há um outro Menino diante do qual não fugiremos nunca e que se aproxima. Antes a morte!...
Após a missa do dia, durante a qual ninguém cantou, o duque mandou chamar Fiora.
Lamento muito por vos ter obrigado a seguir-me, madame de Selongey era a primeira vez que a tratava assim e peço-vos perdão do fundo do meu coração... Eu sei... que não tenho muito a esperar da Fortuna e talvez, até, tenha feito perder a paciência a Deus. No entanto, não encontro coragem para me separar de vós...
Por causa da predição do rabi? perguntou Fiora docemente.
Ah, sabeis disso? Mas enganais-vos. Morrer em combate é tudo o que desejo. A Borgonha com que sonhava... continuará a ser um sonho. Quando o loreno chegar, restar-me-ão, talvez, uns cinco mil homens. Não, se vos peço que me acompanheis é para ter diante dos olhos durante o mais tempo possível uma imagem de beleza pura. Compreendeis?
Não percais a coragem, monsenhor! Isso nem parece vosso. Vós sois o grande duque do Ocidente, sois...
O príncipe que vós odiáveis? Lembrais-vos?
Há muito tempo que não penso assim. O meu marido amava-vos tanto!...
Obrigado, mas não nos entristeçamos mutuamente. Hoje é dia de Natal e eu quero dar-vos um presente... digno de vós.
Tirando do pescoço um delgado fio de ouro, colocou-o no pescoço de Fiora. Este tinha, suspenso, um diamante piramidal ^
de uma rara cor azulada.
Guardai isto em minha memória, porque é quase certo acrescentou ele com um sorriso nunca mais receberdes o vosso dote.
Monsenhor! Não posso aceitar...
Oh, sim, podeis, porque eu quero. E agora retirai-vos e mandai-me Olivier de La Marche... Profundamente comovida, Fiora regressou ao seu alojamento lentamente, a mão segurando a pedra ainda quente.
Compreendera que o sonhador acabara de acordar e que pensava com uma lucidez fria nos perigos que o ameaçavam. Era o javali acossado pela matilha, sabia-o e não faria nada para escapar ao seu destino, limitando-se a defender-se até ao fim. Mas nunca se deixaria apanhar vivo... Como sempre nos grandes dramas, surgiu uma nota burlesca. Nos últimos dias do ano sob a figura do Rei Afonso V de Portugal, primo do duque. O monarca vinha propor os seus bons ofícios para reconciliar o seu primo com o Rei de França, com o objectivo de obter deste último uma ajuda financeira para a sua luta contra a rainha de Castela. O duque Carlos olhou para ele de olhos esbugalhados, como se o Rei de Portugal tivesse caído da Lua: Ajudai-me antes a tomar Nancy! disse ele encolhendo os ombros. O outro abriu também os olhos e depois, compreendendo que não havia nada a fazer, eclipsou-se sem dizer palavra. Campobasso desertou na noite de São Silvestre, levando consigo os seus dois filhos e trezentos cavaleiros. Ia juntar-se ao duque da Lorena, que estava apenas a dois dias de jornada, para lhe pedir, como preço da sua traição, a cidade de Commercy. Esperava uma recepção calorosa, mas só encontrou rostos gelados. Os chefes suíços que rodeavam Renato II declararam-lhe brutalmente que não combateriam ao lado de um traidor. Mandaram-no guardar a ponte de Bouxières, que defendia a passagem pelo Meurthe, a uma légua de Nancy:
Ter-me-íeis, talvez, acolhido calorosamente se vos tivesse trazido a cabeça do Temerário! lançou-lhes ele, furioso.
Seria uma pena uma cabeça tão nobre cair numas mãos tão sujas! ripostou Oswald de Thierstein.
A 4 de Janeiro de 1477 o exército loreno instalou-se em Saint-Nicolas-de-Port, nos arredores de Nancy, depois de ter massacrado a guarnição borgonhesa. A batalha seria no dia seguinte.
Na manhã desse domingo, Fiora via a neve cair. Estava menos frio, mas os campos estavam brancos e o vento erguia turbilhões imaculados. Nem ela, nem Léonarde, tinham dormido nessa noite. Era, sem dúvida, por causa da libertação próxima, mas não se sentiam, por isso, menos angustiadas, como se esperassem uma catástrofe... Uma após outra, as companhias deixavam o campo para irem tomar posições e desapareciam na tormenta como um exército de fantasmas...
Após a missa, a que as duas mulheres assistiram junto dele, o duque Carlos fez as suas despedidas e entregou-se aos seus escudeiros para envergar a pesada armadura.
Subitamente, quando um deles lhe colocava o elmo na cabeça, o leão de ouro que o encimava caiu. Impassível, o Temerário olhou para aquele símbolo da grandeza da Borgonha no tapete vermelho e azul e depois para o grande bastardo-.
Hoc estsignum Deil disse ele apenas, enquanto o seu mordomo se apressava a fixar de novo o ornamento. Em seguida colocou-lho na cabeça e dispunha-se a sair quando Battista apareceu e dobrou um joelho perante o príncipe:
Mandai que me dêem armas, monsenhor! Quero estar junto de vós nesta batalha...
Não te confiei uma missão? A de velar por esta dama?
Donna Fiora já não precisa de mim e eu quero combater ao vosso lado. Eu sou um Colonna! Este nome dá-me direito ao perigo.
Será como desejas, meu rapaz disse o duque enquanto um pálido sorriso lhe passava pelo rosto imóvel. Que lhe dêem armas! Adeus... adeus a todos!
1 É um sinal de Deus.
E saiu. O Moro, o seu belo corcel negro, esperava-o, soberbamente coberto por uma carapaça no meio de um grupo de fidalgos. O duque subiu para a sela, saudou as duas mulheres com uma mão e pôs-se em marcha com os seus companheiros. Fiora viu o leão de ouro e o grande estandarte roxo e negro esfumarem-se e desaparecerem, depois, na tormenta de neve.
É melhor entrardes disse Léonarde. Está muito frio.
Só mais um momento...
A jovem não queria que a sua velha amiga visse as lágrimas que lhe caíam dos olhos e deu alguns passos. O ataque, então, foi repentino: apareceram três cavaleiros; um deles apoderou-se dela, atravessou-a na sela sem se preocupar com os gritos, virou a montada e fugiu tão depressa quanto o permitia a neve já espessa.
Já esperei o suficiente gritou ele. Agora, és minha para sempre!
Mas Fiora não precisara de o ouvir. Já reconhecera Campobasso e, sem parar de gritar, começou a debater-se para tentar deslizar para terra, o que retardou a corrida do seu raptor.
Dai-lhe uma pancada, meu pai! aconselhou-o um dos cavaleiros. Um galo nunca matou uma mulher e estamos com pressa.
Mais vale matar-me! berrou Fiora. Isso evitará que eu própria o faça, porque nunca te pertencerei. Metes-me nojo...
O aço da armadura magoava o corpo da jovem, que não deixava, por isso, de se debater, desesperada. O condottiere, ia talvez, seguir o conselho de Angelo, quando três outros cavaleiros surgiram da cortina branca impalpável e lhe barraram o caminho.