- Platão diz que ninguém escapa ao seu destino! Boa noite para vós! Ide dançar juntos esta calata que os músicos começaram a tocar! Eu vou ter com o meu pai, para lhe pedir que me leve a casa... Estou cansada!
A ligeireza com que Fiora girou nos calcanhares desmentia as suas últimas palavras, mas Chiara, tão bem como Luca, sabia que era inútil tentar demovê-la do que quer que fosse quando ela não queria. Com o mesmo suspiro, mas com sentimentos diferentes, viram ambos o seu vestido de brocado nacarado deslizar por entre os grupos e abandonar o salão de festas.
- Bem - suspirou o jovem Tornabuoni - vamos dançar, já que ela assim o deseja!
- É o que se pode chamar um convite galantemente formulado disse Chiara com uma careta trocista. - No fim de contas, por que não? Isso ou pentear um licórnio, é uma maneira de passar o tempo!
Fiora encontrou Francesco Beltrami na sala de música. De pé, perto da chaminé onde uns escravos negros não cessavam de acrescentar cavacos odoríferos, conversava com Bernardo Bembo, o embaixador de Veneza, que já encontrara várias vezes por ocasião de estadias nas margens do Adriático. Quando Fiora se aproximou, era este último que falava e ela não ousou interrompê-lo.
Desde que o papa Pio II morreu, logo depois de tentar lançar uma cruzada contra os Turcos, Veneza luta só contra o infiel, que a desapossou de quase todas as colónias da Grécia, ou da Ásia Menor. Ninguém parece dar o devido valor ao perigo que o Ocidente corre com um sultão da têmpera de Maomé II. Nem o papa Sisto IV, unicamente ocupado com a construção em Roma e a enriquecer os seus sobrinhos, nem Feirante de Nápoles, nem o Sforza de Milão, nem os Genoveses, claro, que esfregam as mãos enquanto contam as nossas perdas em terras, homens e navios. Toda a gente parece esquecer que Maomé conquistou Bizâncio e que o estandarte do Profeta flutua também sobre o Parténon e que apenas a largura do Adriático protege os Estados do Papa da ameaça dos Turcos, cujos exércitos, há dois anos, chegaram a Frioul.
Nessa época, porém, Veneza dava provas brilhantes de coragem e força, expulsando o inimigo das muralhas de Scutari, que estão mesmo por baixo do seu nariz.
Sem dúvida! Loredano, com apenas 2500 dos nossos, repeliu dez mil turcos para o mar. Mas não passou de um caso em mil e quem sabe se, neste momento, Scutari ainda nos pertence? Os corsários turcos atacam os nossos navios quase em frente dos canais do Lido. E infelizmente o nosso doge, Pietro Mocenigo, apesar de só ter 68 anos, está enfraquecido pelos numerosos ferimentos recebidos nas batalhas contra os corsários e janízaros de Maomé. Não durará muito e nós precisamos de um chefe jovem e cheio de vida.
Seja, mas os vossos marinheiros não têm rival e tendes em Bartolomeo Colleoni o maior condottiere de Itália...
Uma nuvem passou pelo rosto de Bembo:
Colleoni acaba de morrer no seu castelo de Malpaga. A sua fama era tal que ninguém se lembrava da sua idade. - Era assim tão velho? Ia fazer 75 anos. Acrescento que legou à República uma soma de cem mil ducados de ouro, para que, apesar de morto, possa continuar a participar na guerra contra os Turcos. Mas pôs uma condição para a sua generosidade: Veneza erigir-lhe-á uma estátua na praça São Marcos...
Peste! disse Beltrami rindo em pleno coração de Veneza! Nós torneámos a dificuldade: a estátua erigir-se-á na praça Scuola
di San Marco. E se eu estou aqui é, sem dúvida, para pedir a aliança de monsenhor Lourenço, para nos ajudar a proteger as nossas possessões em terra firme, caso o Turco se aproxime, mas também para encomendar esta estátua equestre ao vosso maior escultor, Verrochio. Se Florença o autorizar!
Tanto um, como o outro, ficarão, certamente, encantados.
O tom de Beltrami mudou subitamente, ao mesmo tempo que atraía para si Fiora, que se mantinha a dois passos, esperando que a conversa acabasse.
Quanto a esta jovem que, como certamente reparastes, nos escutava, ilustríssimo senhor, permiti que vo-la apresente: a minha única filha, Fiora.
O rosto do veneziano iluminou-se, ao mesmo tempo que a jovem lhe fazia uma graciosa vénia.
Já tinha reparado, com efeito, que nos escutava, mas a curiosa é tão bela que me senti perturbado. Espero não ter dito nenhuma asneira.
Ficai seguro do contrário. Que queres, filhinha? Por que não estás a dançar depois da honra que monsenhor Lourenço te concedeu?
Justamente porque, depois dele, nenhum dançarino é suficientemente bom... Depois, em voz mais baixa, a jovem pediu: Pai, eu queria voltar para casa...
A nota urgente que vibrava na voz da jovem fez compreender a Francesco que ela não estava a obedecer a um simples capricho.
Como queiras, mas concede-me mais alguns instantes. Partiremos assim que monsenhor Lourenço acabar de falar com o borgonhês. A seguir, falará com o senhor Bembo, aqui presente.
Mal ele terminou a frase, apareceu o Magnífico na companhia de Philippe de Selongey. Lourenço vinha sorridente e afável como habitualmente, mas o borgonhês vinha corado e os seus olhos brilhavam, como que dominados por uma cólera dificilmente controlável. Foi possível ouvir-se o que eles diziam.
O que vos disse não retira nada ao facto de que sois meu hósPede, senhor conde! Sois jovem e a hora pertence ao prazer das damas.
A voz de Philippe de Selongey soou como algumas horas antes as trombetas no recinto do torneio:
Agradeço-vos, monsenhor, mas não seria capaz. Comovo-lo disse o duque Carlos, meu nobre senhor, está em guerra e com ele toda a Borgonha. Eu sou um soldado, não um maricas e como não temos mais nada a dizer um ao outro, permiti que me retire... Como vos aprouver. Voltaremos a ver-nos. Achais necessário? perguntou Selongey com arrogância. Sem dúvida. Não será conveniente que eu vos entregue uma carta para o Grande Duque do Ocidente, já que ele me deu a honra de vos enviar à minha presença? Uma carta... é uma prova de admiração De admiração? Isso pouco importa ao meu senhor, já que não obteve o que desejava. O milanês mostrou-se mais sensato ao ouvir as propostas da duquesa Yolanda de Sabóia, aliada de Borgonha... Contra o seu próprio irmão, o rei de França? A voz de Médicis tornou-se, subitamente, cortante. Uma princesa pode, sem dúvida renegar os laços de sangue sob os aplausos de todos. Mas eu permaneço fiel às minhas alianças familiares. Lembrai-vos que a flor-de-lis está nas minhas armas! É verdade acrescentou ele com um leve sorriso de desdém é verdade que nas da Borgonha também está, mas parece que o vosso duque não se preocupa muito com isso... Desejo-vos uma boa noite, messire de Selongey! Ah! senhor Bembo, andava à vossa procura! Acompanhais-me, por favor?
Os dois homens dirigiram-se para o salão de festas. Fiora e o pai não se mexeram, para não embaraçar a saída do embaixador borgonhês. Como todas as escadarias dos palácios florentinos, a da soberba mansão dos Médicis era estreita e íngreme. Mas Philippe de Selongey continuava imóvel. De punhos cerrados, lutava visivelmente contra a vontade de seguir Lourenço e, talvez, vingar-se brutal e imediatamente das palavras desdenhosas que acabavam de ser pronunciadas.; Mas conteve-se, encolheu os ombros e contentou-se em dizer em voz bastante alta para poder ser ainda ouvido pelo Magnífico.!
Nem tudo será como vós dizeis, senhor Lourenço! Quando monsenhor Carlos tiver vencido os suíços e fizer da Borgonha o reino que em tempos foi, aperceber-vos-eis do peso da cólera!
Com um gesto, o borgonhês chamou os dois homens que esperavam a um canto da sala e que faziam, sem dúvida, parte da sua escolta. Ia afastar-se quando se apercebeu da presença dos Beltrami e aproximou-se deles. Um sorriso iluminou-lhe o rosto tão duro instantes antes:
Donzela Fiora, sois aquela que eu desejava ver antes de abandonar este palácio. Pensava, se não dançar, o que não sei fazer, pelo menos conversar convosco por um momento. Creio que vou protelar a minha partida por uns instantes.