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Philippe ofereceu o seu punho fechado, para que Fiora depositasse nele a sua mão. Beltrami repeliu-o suavemente.

Não vos demoreis, messire! Acabais de pronunciar palavras que tornam a vossa presença nesta casa pouco desejável. Quanto à minha filha, não vejo que assunto de conversação possais ter com ela!

Mas... todas aquelas coisas encantadoras que podem interessar a uma jovem e, talvez, saber por que razão o seu rosto me é tão familiar. Tenho a impressão de que já a encontrei, sem poder dizer onde nem quando... O que me envergonha. Devia ser impossível esquecer uma tal beleza.

Fiora já abria a boca para dizer que o cavaleiro teria, sem dúvida, conhecido outrora a sua mãe, mas Beltrami não lhe deu tempo.

Sois vítima de uma ilusão, messire. A minha filha só tem 17 anos e nunca saiu deste país. A menos que se trate de um estratagema... utilizado muitas vezes para meter conversa com uma desconhecida! Boa noite, messire! Nós vamo-nos embora!

A voz era cortês, mas o tom não admitia réplica. Selongey não insistiu e afastou-se, saudando e dando passagem ao pai e à filha. Disfarçadamente, Fiora apanhou-lhe o olhar, ao mesmo tempo sonhador e interrogativo. Já não sentiu a irritação que sentira nos encontros anteriores, antes, pelo contrário, uma curiosa impressão de pena, como a que se sente quando se deixa qualquer coisa interessante por acabar. No entanto, respeitava demasiado as vontades paternais para as discutir... senão na intimidade.

No fundo da escadaria reencontraram os seus servidores, que os esperavam para os escoltar até casa com archotes. Nessa noite não seria preciso iluminação, porque as ruas da cidade estavam cheias de luzes, música e alegria. Festejava-se até nas praças, onde, por ordem de Lourenço, se regalava o popolo minuto, o povinho e, por toda a parte, cantores e saltimbancos arrasavam corações ou mostravam as suas habilidades. A noite de Florença, em festa, estava bela e estrelada...

Diante das portas de bronze do Baptistério, cujas personagens douradas pareciam animar-se à luz dançante dos archotes, um bando alegre de estudantes, aprendizes e raparigas envolveu subitamente o negociante e a sua filha numa roda que os isolou, por instantes, dos seus servidores: Há carícias no ar, messer Francesco exclamou, de imediato imitado pelos outros, um dos rapazes. Ainda não são horas de voltar para casa, são horas de dançar...

Eu já não tenho idade para dançar, meus amigos lançou Beltrami com bom humor e a minha filha sente-se cansada... Cansada? Com esses olhos? Um dos rapazes, que trazia um alaúde às costas, saiu da roda. Pôs um joelho em terra diante de uma Fiora divertida e cantou:

Oh rosa colhida do verde ramo. Foste plantada num jardim de amor...

A canção era célebre. Todos a entoaram em coro e Fiora, sorridente, estendeu a mão ao jovem cantor, que a beijou. Ao mesmo tempo, Beltrami abriu a sua bolsa e tirou dela um punhado de moedas, que atirou para o círculo:

A noite ainda é uma menina, meus amigos! Tirai dela o maior divertimento possível à nossa saúde!

As moedas foram apanhadas rapidamente, após o que o bando, ao som dos alaúdes, das flautas e dos tamborins escoltou o pai e a filha até ao seu palácio, onde, com a permissão do dono da casa, os criados portadores de archotes ofereceram de beber a todos, antes de partirem, também, para dançar até ao nascer do dia. Fiora e o seu pai entraram em casa e Beltrami, tendo exprimido a sua vontade de ir trabalhar para o seu studiolo num manuscrito grego recentemente adquirido, foi seguido por Fiora. Sonhadora, ela aproximou-se do retrato, do qual retirou o véu.

Não são horas para isso! reprovou docemente Francesco. Devias ir dormir...

Por favor, pai, deixa-me contemplá-la mais um pouco! Não vês que acabo de a descobrir? Tu nem sequer me disseste o nome dela.

Disse-te que se chamava Marie.

Há tantas mulheres chamadas Marie! Isso não chega.

Para já, chega. Mais tarde, dir-te-ei...

1 Expressão florentina que significa que se está feliz

Isso, na tua boca, significa imensos anos, não é verdade? E eu, que queria tanto saber... Aquele estrangeiro, aquele... Philippe de Selonggy acrescentou ela corando subitamente tê-la-ia conhecido?

Admitindo que isso seja possível, devia ser bastante jovem.

E a semelhança de que ele falou? Beltrami fechou nas suas as mãos de Fiora.

Não insistas, minha filha! Não me farás dizer o que eu quero guardar para mim e acabarás por ficar zangada! Vai dormir! Aliás, eis donna Léonarde, que te vem buscar...

Com efeito, a porta acabava de ranger, como habitualmente, dando passagem à governanta.

Não vos esperava antes da madrugada. Que se passou?

Nada, fui eu que quis voltar para casa. Não me estava a divertir tanto quanto esperava disse Fiora.

Monsenhor Lourenço dançou com ela e ainda se queixa!

Mas Léonarde já não os escutava. Tinha visto o quadro que Fiora tinha deslocado para ficar mais iluminado, perto da chaminé. Ao cabo de um instante, os seus olhos arregalados viraram-se para Beltrami:

Onde arranjastes esta imagem? perguntou ela em voz neutra.

Pintaram-mo segundo as parecenças de Fiora. É espantoso, não é verdade?

Ele deu uma pequena risada falsamente desenvolta, mas Léonarde continuou a não o ouvir.

Porquê?

Simplesmente porque me apeteceu. Não é suficiente?

Um enorme suspiro, que evocava o silvo de uma forja, escapou-se do peito da governanta:

Vós sois o vosso único juiz, messer Francesco, mas permiti que vos diga que não gosto nada. Isto é tentar o destino... e até o diabo, dar a um rosto morto as parecenças de um rosto vivo. Se acontece alguma coisa à criança...

Bagatelas, tudo isso! Não metais tais ideias na cabeça da rapariga, que já tem demasiada imaginação... e curiosidade! Ela disse que estava cansada, ide deitá-la!

Fiora, que seguira o curto diálogo com a atenção que se compreende, ofereceu a fronte ao beijo do seu pai e deixou-se levar sem protestar, mas a perturbação de Léonarde não lhe escapara e, uma vez no quarto, enquanto Khatoun, estremunhada, e a governanta a despiam para a meterem na cama, ela perguntou bruscamente em francês, para ser compreendida apenas por Léonarde:

Vós também não me ides dizer nada?

Acerca de quê?

Acerca da minha mãe. Por que razão não tenho o direito de saber o apelido dela?

Já chega que rezeis por ela. Se o vosso pai não vos diz nada é porque tem as suas razões. Tentai dormir, agora!

Não tenho sono e acho que a história da minha mãe é uma história terrível.

Quem é que vos meteu essa ideia na cabeça? ”

O meu pai, com o que fez esta manhã...

E ela contou o que se passara no studiolo, quando Francesco quis demonstrar-lhe que ela era tão bela como aquela que ele quisera perpetuar numa recordação.

Reparei numa mancha escura na renda e o meu pai acabou por me dizer que era sangue. O sangue da minha mãe! Não me podeis dizer como ela morreu?

Léonarde, que durante o relato dera sinais de agitação, persignou-se várias vezes:

Não!... Não, não conteis comigo para isso! Dir-vos-ei apenas isto: a vossa mãe era uma criatura doce e adorável, que a infelicidade perseguiu durante toda a sua existência. O amor que o vosso pai lhe devotou foi a única dádiva que o destino lhe deu. É por isso que rezaremos sempre por ela. E agora, dormi!

Empunhando as cortinas brancas de damasco do leito, a governanta ia fechá-las quando Fiora a impediu: