O toque a finados continuava as suas notas fúnebres e quando o florentino, pouco interessado no espectáculo, tentou fazer passar a sua mula através da multidão para continuar o seu caminho, encontrou uma resistência rabugenta, traduzida por meio de algumas injúrias escolhidas por parte de uma comadre, ordenando-lhe ao mesmo tempo que se mantivesse quieto até que tudo estivesse terminado...
Mas eu não quero saber da vossa execução! exclamou Beltrami com impaciência. Eu só quero seguir o meu caminho. Deixai-me passar!
Mesmo que quiséssemos, não podíamos. Os condenados estão a chegar. Tem calma, meu querido e deixa-nos ver!
Uma espécie de enorme suspiro escapou-se de todos os peitos quando a carroça apareceu, em redor da qual as lanças dos soldados formavam como que uma grade. Todos os pescoços se estenderam e, em vez da gritaria que acompanhava habitualmente a aparição dos condenados, fez-se um grande silêncio. Só se ouvia o sino e o ranger das rodas da sinistra atrelagem. A mulher que tinha injuriado Francesco persignou-se lentamente e murmurou com uma voz estrangulada pela emoção:
Pobre Virgem Santa! Como eles são novos!... Como eles são belos!...
Petrificado, de olhos arregalados e a garganta subitamente seca, Francesco viu os dois jovens avançar para a morte. Com efeito, eram muito jovens: o rapaz não teria mais de 20 anos e a sua companheira devia ter 17, ou 18. Pareciam-se de Maneira impressionante, tão impressionante como a sua extraordinária beleza. Os mesmos rostos de traços puros, os mesmos olhos cinzentos, a mesma distinção e a mesma coragem, porque ambos olhavam firmemente para o grande cadafalso coberto com um pano negro, onde os esperava o carrasco e os seus ajudantes. Apenas os seus cabelos os diferenciavam, porque ele era tão moreno quanto ela era loura. Até as roupas eram semelhantes: ambos estavam vestidos de veludo cinzento-claro bordado a ouro. Ele ia de cabeça descoberta, mas ela levava na cabeça um pequeno chapéu com um véu de renda, o que lhe dava o ar de uma noiva a caminho do altar. Não os tinham acorrentado e eles iam de mãos dadas. Ninguém diria que eram condenados, de tal Maneira pareciam ir a caminho do triunfo. Atrás deles, um velho padre chorava para as mãos coladas ao rosto.
Francesco recordou-se, então, do que o soldado dissera na sua Maneira grosseira: aquelas duas crianças eram irmão e irmã... e amavam-se. Era pelo incesto, sem dúvida, que iam pagar com as suas vidas... Como era estranho! E mais estranha ainda a atitude daquela multidão, que não gritava, não dizia nada, mas onde várias mulheres e homens choravam... De repente, ouviu-se um lamento:
Misericórdia! Misericórdia pela juventude deles!...
Outras vozes se ergueram, numerosas e entre elas ouviu-se a do viajante. Francesco viu-se parte integrante daquela multidão desolada, com a impressão assustadora, ainda por cima, de que a sua vida estava ligada à daquela mulher adorável e que nada, naquele instante, era mais importante do que arrancá-la ao que a esperava... Uma trombeta soou e o preboste, que acompanhava os condenados, gritou do alto do seu cavalo:
Não haverá misericórdia! O senhor duque ordenou a morte!
A multidão rugiu e Francesco sentiu uma esperança. A de ver toda aquela gente lançando-se ao assalto do cadafalso para lhe arrancar as suas vítimas, mas já o rugido esmorecia, se tornava num murmúrio e depois num silêncio consternado. O velho duque Filipe, cognominado o Bom e que tanto amava as mulheres, tinha uma mão pesada. Ninguém, ali, o ignorava...
Já a jovem subia sozinha, corajosamente, na direcção do carrasco mascarado que a esperava, erguendo um pouco o seu longo vestido num belo gesto e recusando cortesmente a ajuda do executor, cuja mão tremia um pouco. Chegada ao alto, respirou profundamente, persignou-se e olhou por um instante para o céu, onde um tímido raio de sol se esforçava por atravessar as nuvens. Em seguida, sorriu para a multidão e tirou o chapéu, que deixou cair. Por fim, ajoelhou-se, afastou ela própria os seus caracóis brilhantes e pousou o pescoço frágil no bloco grosseiro de madeira. Em baixo, com um gesto paternal, o padre agarrara o jovem pelos braços e escondia-lhe o rosto no ombro. A multidão suspendeu a respiração.
Mal teve tempo de ver luzir o aço da pesada espada brandida a duas mãos. Tudo acabara. Os ajudantes do carrasco já se apressavam a arranjar lugar para a próxima vítima. Desajeitado, sem dúvida, ou demasiado emocionado, um deles, ao afastar o corpo da jovem, ergueu-lhe o vestido até aos joelhos, deixando ver umas meias de seda vermelha. A multidão rugiu, indignada. Arny Signart, o carrasco, saltou de imediato. Com toda a força, esbofeteou o desajeitado, que rolou para cima do pano ensanguentado, agarrando-o depois com uma mão e obrigando-o a ajoelhar-se diante do despojo delicado em sinal de arrependimento. A multidão murmurou, satisfeita.
Era a vez do jovem, que se desprendeu dos braços do padre, se ergueu para a plataforma, levantou do chão a cabeça loura para lhe dar um último beijo e se deixou cair de joelhos.
Despacha-te, carrasco! Tenho pressa de me juntar a ela...
Não receeis! Não falta muito.
A espada ergueu-se. Outro relâmpago, outro choque e a cabeça do jovem rolou para perto da da jovem. Estava visto e o povo começou a afastar-se pelas ruas adjacentes no meio de um profundo e pouco usual silêncio. O toque a finados, por fim, cessou. Mas Francesco não se afastou. Pelo contrário: entregando o seu cavalo a Marino, avançou para o cadafalso onde o padre, de joelhos, rezava após ter lançado uns sudários para cima dos corpos mutilados. O carrasco e os ajudantes olhavam para ele, não ousando interromper a oração, quando subitamente um homem ricamente vestido com um manto negro forrado de cinzento se lhes juntou. A sua voz áspera repercutiu-se no ar frio, sinistra como a voz de um corvo:
Então, senhor Signart, que esperais para pegar no que vos pertence por direito? As roupas dos supliciados já não pertencem aos executores?
O padre cessou a sua oração e ergueu para o homem um olhar pleno de terror e dor. Ao mesmo tempo, estendeu as duas mãos por cima dos corpos, num gesto de protecção irrisório, mas tocante:
Respeito pela morte, messire Regnault! Em nome de Deus, que sofreu na cruz, retirai-vos. A vossa vingança completou-se.
Não estará completa enquanto estes miseráveis não forem atirados para a fossa malcheirosa que os espera! Vamos, carrasco, tira o que te é devido! Despe-os!
Sem responder, este tirou, com um gesto enfadado, a máscara que fazia dele o artífice impessoal dos actos de justiça, mostrando um rosto rude e triste, cercado por uma barba cinzenta.
Não, messire, eu não quero estes despojos, por mais ricos que sejam. Não me dariam sorte... nem a mim, nem aos meus!
O homem do manto não teve tempo de responder. Francesco interpôs-se subitamente entre ele e o executor, ao qual estendeu algumas moedas de ouro.
Falastes bem, mestre! Mas, como se trata de uma lei, tomai isto: eu compro-vos os trajes. Podeis enterrá-los com eles, padre!
Que tendes vós com isso? resmungou o homem a quem o padre chamara Regnault. Eu tenho todos os direitos sobre estes dois, que foram, aliás, condenados às penas do inferno.
Visto de perto, Regnault estava medonho, pelo ódio que lhe torcia diabolicamente o seu longo rosto de pele amarela, de pequenos olhos cruéis e penetrantes. Aquele homem transpirava fel por todos os poros da sua pele vil. Só lhe faltava uma língua bífida saindo-lhe da grande boca de dentes enegrecidos, para se parecer com uma serpente. Uma violenta cólera apoderou-se de Francesco, que agarrou o homem pelo manto: