Sabeis muito bem que não gosto de dormir fechada. E tenho mais uma coisa para dizer: esta noite, no palácio Médícis, um homem estranho fez-me uma profecia.
Isso já é outra coisa! Que profecia? E a jovem repetiu-lha, acrescentando:
A vossa amiga Colomba, que sabe sempre tudo, deve ter ouvido falar de Demétrios Lascaris! Gostaria de saber o que pensa ela dele.
Certamente nada de bom! rabujou Léonarde. Não deve passar de um charlatão e de um mau homem! Meter semelhantes ideias na cabeça de uma criança como vós! Espero bem que não tenhais acreditado
nem numa palavra! Quanto a monna Simonetta, toda a Florença sabe que ela não passa bem de saúde. Que um médico seja capaz de ver mais longe, é possível, mas não tinha nada que vos dizer essas coisas. Onde havíeis de estar no ano que vem, meu Deus, senão aqui, ou em Fiesole?... A menos que o vosso pai tenha decidido levar-vos numa das suas viagens e nesse caso vós possais enjoar? Não é preciso ir mais longe, porque monsenhor não vos quer casar já.
Achais que sim? disse, aliviada, Fiora, que não tinha pensado naquela eventualidade.
Com certeza, meu passarinho azul. Esquecei tudo isso! Amanhã direi a messer Francesco que vigie um pouco mais as pessoas que se aproximam de vós quando eu não estou convosco...
Mandando Khatoun, que não parava de bocejar, para o leito de almofadas e peles que ela ocupava a um canto do grande quarto, Léonarde apagou as velas, deixando apenas uma de azeite, perfumada, à cabeceira da cama. A pedido de Fiora, deixara a janela meio aberta para deixar entrar o ar fresco da noite.
Estendida no seu grande leito, Fiora, que não era de uma piedade extrema, murmurou uma curta oração e depois, sentindo que o sono lhe tornava as pálpebras pesadas, fechou os olhos.
Reabriu-as quase de imediato. Um ruído seco de vidros partidos, seguido de um choque surdo, fê-la sentar-se na cama e depois deslizar para fora dela. Qualquer coisa batera no batente da sua janela entreaberta, quebrando um dos pequenos quadrados e essa coisa caíra no tapete.
Com a ajuda da vela, Fiora descobriu uma pedra, à volta da qual estava atado um papel, bem apertado. Com o coração a bater com toda a força, a jovem apanhou-a e lançou, depois, um olhar na direcção de Khatoun, mas a pequena escrava não ouvira nada e dormia de punhos cerrados, enroscada no seu ninho de almofadas.
Fiora foi sentar-se no seu leito, recolocou a vela no seu lugar, rasgou com os dentes a guita que fixava a estranha mensagem, desdobrou-a e leu-a. Continha apenas algumas palavras:
«Amanhã espero-vos, durante toda a manhã, na igreja da Santa Trinita. Não poderíeis ir lá rezar? Preciso absolutamente de vos falar!» E estava assinada: Ph. de S.
Corada e confusa, como se o enviado borgonhês tivesse entrado no seu quarto, Fiora virou e revirou o bocado de papel entre os dedos, sem perceber bem se estava furiosa ou perturbada. Que aquele desconhecido tivesse a audácia de lhe marcar um encontro escandalizava-a, mas sem bem se dar conta sentiu um certo de orgulho misturado com uma certa excitação perante aquela espécie de aventura que se lhe apresentava. Uma aventura como as que ela soubera-o ao ouvir Leonard e Colomba conversarem aconteciam a certas jovens senhoras e raparigas da cidade. A questão era saber se iria ou não a Santa Trinita. A igreja era próxima e ela sabia que podia ir lá apenas na companhia de Khatoun. Léonarde ia lá regularmente, todas as manhãs, para a pequena missa da manhã e, logicamente, não acharia útil regressar só porque, extraordinariamente, Fiora se sentia piedosa e disposta a ouvir o santo ofício num outro dia que não ao domingo e nos dias de festa. A jovem não sabia, na sua candura, que, posta a pergunta naqueles termos era já conhecer a resposta e quando, por fim, adormeceu depois de ter queimado o papel e depositado a pedra onde ela caíra, já decidira ir ao encontro de Philippe de Selongey.
A dita pedra e a janela quebrada intrigaram dame Léonarde quando esta as descobriu na manhã seguinte. O ar inocente das duas raparigas bem desempenhado por parte de Fiora, mas autêntico por parte de Khatoun, que não vira nem ouvira nada convenceram-na a atribuir o incidente a um bêbedo qualquer das muitas centenas que floresciam durante as noites de festa. Evidentemente, não era tão ingénua que ignorasse que uma pedra lançada através de uma janela era um meio conhecido de fazer chegar uma mensagem, mas pensou que nesse caso Fiora teria feito desaparecer, tanto a pedra, como o bilhete. E tranquilizou-se ao pensar que o expedidor, a ser um galanteador, não podia ser senão Luca Tornabuoni, ou um dos outros admiradores da jovem. Em qualquer dos casos, o mal não era grande.
Vou mandar reparar a janela enquanto estiverdes a tomar banho.
Por favor, dame Léonarde, mandai prepará-lo o mais rapidamente possível. Queria ir ouvir missa a Santa Trinita.
Estais doente?
Se estivesse doente, dame Léonarde, ficava na cama disse Fiora com grande dignidade. Mas, depois de tudo o que me aconteceu ontem, acho que preciso de rezar.
Léonarde não insistiu, mas, suspeitando daquela súbita crise de piedade por parte de uma rapariga que parecia estimar mais Platão, Hesíodo, ou Sófocles do que os evangelistas, prometeu a si própria rindo à socapa, porque se a pequena começasse a interessar-se por outro rapaz que não Giuliano de Médicis era uma boa coisa vigiá-la sem que ela se apercebesse. E mandou Khatoun preparar o banho.
Uma hora mais tarde, envolta num grande manto escuro com um capuz forrado de pele de esquilo porque o tempo refrescara bruscamente, Fiora trotava na direcção de Santa Trinita com Khatoun nos seus calcanhares transportando uma almofada e um missal. Aquando da morte da sua mãe, a jovem tártara fora baptizada com o nome de Doctrovée, que era a santa desse dia, mas nunca ninguém a tinha chamado como tal. Khatoun sempre fora o seu nome e Khatoun continuara, mas graças a esse baptismo podia acompanhar Fiora nas suas devoções à igreja.
Santa Trinita, defronte da qual todos os anos as damas e as donzelas de Florença celebravam o regresso da Primavera, era uma severa e nobre igreja gótica, que seria sombria se não fossem os numerosos círios que ardiam nas diferentes capelas. Sob as abóbadas decoradas com frescos de Baldovinetti, estes formavam grandes ramos de luz, que reflectiam o ouro dos altares.
Estava a começar uma missa na nave e Fiora decidiu segui-la antes de ouvir o que o cavaleiro borgonhês tinha para lhe dizer de tão importante. Aliás, tinha reparado imediatamente, ao entrar, na sua alta silhueta escura, plantada na segunda capela à esquerda da nave, diante dos frescos de Giovanni da Ponte. Com o nariz levantado para o magnífico túmulo de Federighi, esculpido por Luca delia Robbia, Selongey parecia estudar cada pormenor com a atenção de um conhecedor, mas Fiora, hipocritamente abrigada sob o seu capuz, viu que ele lançava rápidas olhadelas a cada pessoa que entrava na igreja. Então, a jovem descobriu o rosto o suficiente para que ele a reconhecesse, mas não deu a entender que o tinha reconhecido e foi ajoelhar-se no meio da nave, um pouco atrás das poucas pessoas que ali se encontravam...
Nunca uma missa foi seguida de modo tão distraído. Fiora não rezava e mal escutava, consciente da presença que sentia atrás de si. Ela sabia, sem precisar de virar a cabeça, que o homem, ainda ignorado vinte e quatro horas antes, estava ali muito perto dela e experimentava uma perturbação que não conseguia explicar, mas que sentia com algum prazer... Khatoun, que não tinha qualquer razão para não se virar, cochichou:
Está um belo senhor mesmo atrás de nós que não pára de olhar para ti, patroa!
Eu sei sussurrou Fiora. Ele vai falar connosco daqui a pouco, mas não podes dizer a ninguém. Prometes?