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Sem se preocupar com a santidade do local, Khatoun escarrou para o chão enquanto estendia a mão, que era a sua maneira de prestar juramento desde que vira dois marinheiros do Arno agirem desse modo. Fiora não conseguiu evitar um sorriso, mas distinguiu um riso abafado mesmo nas suas costas.

Um riso que, aliás, se extinguiu, terminando num ataque de tosse.

O ofício chegava ao fim. Manejado vigorosamente por um jovem diácono de cabelos em desordem, o incensório lançou alguns clarões e umas espessas volutas de fumo odorante, que encheram a nave com um nevoeiro que encobriu a casula matizada do padre e os preciosos objectos de culto, ao mesmo tempo que, de joelhos, Fiora prosseguia numa oração mais aparente do que real. Uma voz em surdina chegou-lhe aos ouvidos:

Espero-vos junto da pia de água benta...

Ela inclinou ligeiramente a testa, mas não se mexeu, oferecendo a si própria o prazer bem feminino de fazer esperar um pouco mais o homem que a convidara, tão cavalheirescamente, a vir ter consigo, o que lhe permitiu esperar que a igreja se esvaziasse quase por completo. Restava apenas o sacristão, que estava ocupado a apagar os círios dos grandes candelabros com um apagador de cabo comprido, quando, com um último sinal da cruz, Fiora se levantou. Com passos contados regressou lentamente, muito lentamente, para a porta e depois, subitamente, obliquou, para se juntar àquele que a esperava na sombra de um pilar.

Quando chegou perto dele, Selongey segurou-a pela mão e levou-a para a capela mais próxima, que era também aquela onde havia menos luz.

Aquela rapariga que nos segue? perguntou secamente o borgonhês sem se preocupar com qualquer fórmula de delicadeza. Sufocada por tanta impertinência, Fiora começou por libertar a mão:

É Khatoun, a minha escrava. E não penseis que a mando embora: ela nunca se afasta de mim!

Uma escrava? Estais numa igreja e dizeis-me isso tranquilamente? Que espécie de cristã sois vós?

Não creio que tenhais lições a dar-nos nesse capítulo. Os nossos escravos são, parece, mais bem tratados do que os vossos domésticos, ou os vossos camponeses. Como os pagamos bem, tratamo-los bem.

Na verdade, sois uma gente incrível e...

Mudemos de conversa, messire! Não me fizestes vir aqui esta manhã para discutir os nossos usos e costumes! É um assunto acerca do qual não aceito críticas.

Perdoai-me! Não queria melindrar-vos. O que quero é fazer-vos uma pergunta, se me permitis.

Tudo depende da pergunta disse Fiora, sempre na defensiva. Estava muito direita em frente do seu interlocutor, o olhar altivo fixo no de Philippe, que subitamente sorriu e murmurou com a voz mudada:

Tendes uns olhos transparentes. Deve ser possível ler neles o menor movimento da vossa alma...

Isso também não merecia o incómodo... Então, essa pergunta? Se, na realidade, tendes uma...

Tenho uma. Disseram-me que a vossa mãe não era daqui, que era uma nobre dama estrangeira.

Eu sabia que as línguas trabalhavam depressa por aqui protestou Fiora mas ignorava até que ponto! Vós acabais de chegar.

E vou partir muito brevemente, mas é preciso tão pouco tempo para que uma pessoa se interesse por outra!... Ao ponto de tentar saber tudo o que lhe diz respeito. Se vos pergunto pelo nome da vossa mãe é por causa dessa vossa parecença com uma das recordações da minha juventude. Quando eu tinha 12 anos, fui pajem do senhor conde de Charolais, depois duque da Borgonha.

Peço-vos, continuai!

Monsenhor Carlos tinha então como escudeiro um jovem muito belo... e muito triste. Raramente sorria, o que era uma pena, porque O seu sorriso era encantador... exactamente como o vosso. Nunca esqueci aquele rapaz, que, aliás, desapareceu bruscamente. Chamava-se Jean de Brévailles, da boa nobreza borgonhesa, mas de pouca fortuna. Vós pareceis-vos estranhamente com ele, tanto quanto uma rapariga pode parecer-se com um rapaz.

E vós pensastes que talvez esse jovem fosse da minha família?

Com efeito. Foi por isso que vos perguntei o nome da vossa mãe, arriscando-me a parecer-vos indiscreto.

Dir-vo-lo-ia voluntariamente se o soubesse, mas o meu pai, preocupado, sem dúvida, em proteger as suas recordações... e talvez a honra de uma família, já que eu nasci fora do casamento, nunca mo quis dizer. Só sei uma coisa: ela chamava-se Marie.

O silêncio tão particular das igrejas vazias, cujas paredes opõem fronteiras intransponíveis aos ruídos do exterior, silêncio feito da majestade divina e do vazio enorme que as abóbadas abrigam e onde o menor som ecoa e se amplifica, estabeleceu-se entre os dois jovens. Sentindo de novo a emoção da véspera, Fiora reviu o rosto doce da jovem loura, enquanto Philippe, esse, olhava para Fiora. Do outro lado do pilar, onde se mantinha por discrição, Khatoun tossiu e a igreja pareceu tossir com ela. Fiora, arrancada ao seu sonho, estremeceu e, apertando contra si própria as pregas do seu manto, levantou os olhos para o cavaleiro e viu que ele continuava a olhar para ela sem que fosse possível adivinhar-lhe o pensamento. O seu rosto trigueiro parecia hirto e na ruga sarcástica da sua boca a jovem pensou ver desdém.

Não vos disseram que o meu pai não era o marido da minha mãe? Ora aí está. Eu sou bastarda, para falar com franqueza. Acrescento que, entre nós, isso não tem muita importância. É verdade acrescentou ela com um meio sorriso que nós, os Florentinos, somos uma gente estranha, meio selvagem...

A sua ironia irritou Selongey.

Não digais asneiras! Nunca disse semelhante coisa. Aliás, nas nossas grandes famílias, a bastardia também não é uma marca infame. Apenas conta o sangue do pai. Assim, o melhor capitão de monsenhor Carlos é seu meio-irmão, bastante mais idoso do que ele, aliás: o Grande Bastardo Antoine...

Desta vez Fiora sorriu alegremente, mostrando umas covinhas nas faces e mostrando a húmida brancura dos seus dentes.

Não vale a pena ficar furioso por dizer isso, messire. E, como estamos de acordo, permiti que me retire. A minha governanta talvez ache a missa um pouco longa demais...

Sois assim tão vigiada?

Sou-o tanto quanto deve ser uma rapariga da minha idade e da minha condição disse Fiora severamente. Não deveríeis criticar semelhante coisa.

Nem é meu propósito fazê-lo. Mas, suplico-vos, não partais ainda. Eu...

Ele parecia hesitar e Fiora impacientou-se.

Tendes mais perguntas para me fazer? Nesse caso, peço-vos que as façais rapidamente. Estou com pressa.

O que tenho a dizer merecia um grande desenvolvimento, mas como estais com pressa...

Antes que Fiora pudesse esboçar um gesto, ele tomou-a nos braços e beijou-a apaixonadamente. Sufocada, a jovem sentiu-se levada por uma força irresistível, ao mesmo tempo brutal e infinitamente doce, que a tornou incapaz da menor reacção. Enquanto o menor esboço de carícia, vindo de um dos seus apaixonados, desencadeava nela uma cólera orgulhosa, aquele homem, cujo coração ela sentia bater pesadamente contra o seu peito, provocava-lhe uma espécie de embriaguez. O jovem cheirava a couro, a ar livre, a erva molhada e até a cavalo e esse odor tinha qualquer coisa de enebriante, como enebriante era aquele beijo, o primeiro da sua vida. Ele acendeu-lhe um fogo no sangue e um deslumbramento divino na cabeça. Um universo abria-se, subitamente, diante de si, o universo flamejante do amor dos homens, que não se parecia nada com os sonhos azuis de uma jovem e que não se alimentava de lindos versos, nem de suspiros...

Demasiado inocente para retribuir a carícia, Fiora, vazia de forças mas com o coração a bater com toda a força, deixou-se ir nos braços de Philippe e quando ele a largou tão bruscamente como a tinha agarrado, a jovem quase caiu. Ele segurou-a e, mais docemente, apertou-a contra o peito. Erguendo-lhe o queixo com um dedo, beijou-a levemente na ponta do nariz e em cada um dos olhos: