Amo-te! murmurou ele com um ardor que a fez corar. Amo-te e quero-te...
Desta vez ele separou-se dela e depois, sem se virar, saiu da igreja a correr. Fiora, ainda sob os efeitos do sonho em que acabava de mergulhar, deixou-se cair de joelhos. Por cima dela, a estátua de uma santa, que ela, na sua perturbação, teria tido dificuldade em identificar, sorria-lhe à luz fraca e difusa de duas velas. E porque era preciso a qualquer Preço recuperar o sangue-frio e dar tempo ao seu coração para se acalmar, Fiora pôs-se maquinalmente a rezar...
Então, Khatoun veio ajoelhar-se junto dela e pegou-lhe numa mão, na qual encostou a face:
É tarde, patroa sussurrou ela. Temos de voltar. Fiora olhou para ela com um olhar ligeiramente distante:
Achas que sim? Eu... eu não me apetece voltar. Agora não! Ainda não!
A jovem tártara deu uma pequenina risada doce, como o arrulhar de uma pomba.
Eu sei porquê. É porque tens medo que se veja na tua cara.
O quê?
Que agora já sabes o que é o amor...
És parva! Achas que amo aquele homem? Não sabes que eu amo Giuliano?
A jovem ficou estupefacta ao pronunciar o nome, por já não lhe encontrar cor ou ressonância. O que sentia antes pelo jovem Médícis acabava de se apagar como um sonho que, de manhã, se tem dificuldade em recordar.
Não disse Khatoun tu apenas sonhaste que o amavas. Mas este que acaba de te deixar, levou-te com ele... e tu sabe-lo bem.
Fiora não respondeu e escondeu o rosto nas mãos, como que para melhor se absorver na sua oração, mas foi apenas para não encontrar, naquele instante, o olhar daquela rapariga vinda do fim do mundo da Ásia, que lhe falava de certezas das quais ela ainda só tinha um vislumbre.
CAPÍTULO III
AS SURPRESAS DO AMOR
No dia seguinte de manhã, Francesco Beltrami, acompanhado da sua filha, dirigiu-se à loja do livreiro Vespasiano Bisticci. De braço dado, ambos seguiam num passo vivo, porque a temperatura tinha baixado e estava quase frio. O que não tirava nada ao prazer que Fiora sentia por ir com o pai não seria conveniente ir sozinha ao livreiro onde se encontrava a elite intelectual da cidade. A jovem considerava aquilo uma honra e o seu gosto pelos livros encontrava ampla matéria com que se enriquecer.
Àquela hora da manhã, a via Larga, onde Bisticci tinha a loja, estava bem animada. Donas de casa dirigiam-se ao mercado com um cesto debaixo de cada braço, damas de cabeças cobertas por véus ou capuzes saíam de uma missa em San Lorenzo, a igreja vizinha do palácio Médicis, separada da Biblioteca Laurentina por um claustro, um pastor conduzia o seu rebanho, uns pedreiros carregavam pedras para cima de uma carroça cujo espaço de carga era feito de grandes paus entrelaçados, alguns burgueses passavam em grandes trajes de seda negra e gorros de fita e, à esquina de uma casa, uns rapazitos jogavam ao peão lançando gritos agudos.
As saudações, apressadas, respeitosas, ou amigáveis assinalavam o caminho de Francesco Beltrami. Ele respondia-lhes com amabilidade e cortesia, feliz por poder, assim, medir a amplitude da sua reputação. Quando o pai e a filha iam a chegar à casa de Bisticci, uma vara de porcos desembocou na rua e quase os atirou, a ambos, por terra. Um rapazito corria atrás deles. Ficou muito corado ao reconhecer o rico negociante e caiu de joelhos no meio da rua:
Oh, perdão, messer Beltrami, mil vezes perdão!
Parecia aterrorizado e, por pouco, quase se prostrou:
Mas, infeliz disse Francesco rindo se ficas assim de joelhos no meio da rua os porcos perdem-se. Corre atrás deles, pequeno imbecil, em vez de me pedires desculpa! E toma! Pega lá isto, no caso de não os encontrares a todos. Não vale a pena o teu patrão bater-te...
O negociante estendeu ao rapazito assombrado um florim de ouro e afastou-se com Fiora, ao mesmo tempo que o pequeno, feliz, dava às de vila-diogo.
Era a ti que deviam dar o cognome de Magníficodisse Fiora, comovida. És o homem mais generoso do mundo.
Porque dei um florim? O verdadeiro Magnífico teria dado dez. As coisas são como são. Um instante depois chegaram à loja do livreiro.
Vespasiano Bisticci era, em Florença, o grande especialista de obras antigas e os seus correspondentes vasculhavam sem descanso as cidades da Grécia e do Oriente em busca de manuscritos raros. Era um homem de 60 anos, grande e majestoso, muito amável e erudito. Os seus traços eram nítidos, bem marcados por uma rede de rugas, mas os seus olhos escuros faiscavam de juventude e a sua voz era de uma grande doçura.
O livreiro deixou a personagem com a qual conversava quando os Beltrami entraram e aproximou-se destes apressadamente.
Sê bem-vindo, ser Francesco e tu também, Fiora. Confesso que, se bem que esperasse a visita do teu pai, não pensei que a tua presença a tornasse ainda mais agradável. Tu és a própria imagem da Primavera...
Ainda ma tornas vaidosa protestou Francesco. Venho ver se já terminaste aquela cópia dos Commentaires que te pedi.
Quase. Pus nesse trabalho os meus melhores copistas e penso dar-te em breve o livro terminado, mas recebi uma coisa que, penso, te vai interessar.
De imediato, os olhos de Beltrami começaram a brilhar.
Diz lá o que é, depressa!
Quis seguir Bisticci, que se dirigia na direcção das profundezas da sua loja e, ao fazê-lo, deu um encontrão na personagem a quem o livreiro falava anteriormente. De imediato se desculpou, mas o homem virou-se e Fiora reconheceu o médico grego de quem tivera tanto medo no baile dos Médícis.
Não me deveis qualquer desculpa disse ele com a sua voz grave, ao mesmo tempo que esboçava uma saudação cortês, eu encontrava-me na vossa passagem. É que, quando estou aqui, não presto atenção senão às obras que me rodeiam...
De qualquer modo, creio que vos devo uma. A nossa chegada interrompeu a vossa conversa com messer Bisticci...
Não tem importância; eu já estava de saída. Na verdade, vim aqui para obter a cópia de um precioso tratado de medicina de Ibn Sina, a quem chamam no Ocidente Avicena, cujo original messer Bisticci recusa vender-me.
Eu disse-vos que era impossível, messer Lascaris, porque monsenhor Lourenço é que o tem, mas ele consente que se façam dele cópias disse Bisticci que estava de regresso trazendo um volumoso pacote envolto num pano negro. Infelizmente, o meu copista de língua árabe está de cama com uma forte febre e eu tive de pedir um adiamento para a entrega do tratado.
O importante é que ele chegue um dia disse o grego docemente. E agora retiro-me e deixo-vos conversar...
Perturbada pela sua presença, Fiora tinha-se afastado e fazia de conta que se interessava por um evangeliário grego, pousado em cima de uma estante. Demétrios tinha de passar por ela para sair, mas, depois de se ter certificado com uma olhadela que o livreiro e o seu cliente se instalavam junto de um balcão de carvalho encerado, em cima do qual Bisticci colocara uma grande lâmpada de azeite, aproximou-se da jovem.
Esse texto é bem austero para uns olhos tão jovens! disse ele num excelente francês. Ledes grego, mademoiselle?
Fiora virou-se bruscamente e fez-lhe face. Aquele homem metia-lhe sempre medo, mas isso era mais uma razão para não recuar.
É verdade. E também leio latim. E vós, messire, continuais a ler os pensamentos dos outros, tal como fizestes com os meus na outra noite?
Um pensamento apanha-se facilmente quando nasce de uma emoção, ou ainda quando a alma daquele, ou daquela que pensa, é pura. Vós seríeis para mim, sem dúvida, uma aluna notável, se não fôsseis de alta condição... No entanto, peço-vos que vos lembreis do seguinte: no caso de a infelicidade bater à vossa porta, estarei sempre Pronto a ajudar-vos. O meu nome é...