Eu sei. Disseram-mo. Mas, messire, é a segunda vez que me anunciais horas sombrias. Não me podeis dizer mais nada?
De momento não, porque o vosso pensamento está demasiado ocupado com o amor e porque, enquanto isso, não podeis submeter-vos ao vosso destino, mas lembrai-vos de mim quando chegar a hora. Monsenhor Lourenço deu-me uma casa em Fiesole...
- Nós também temos lá uma.
Eu sei. Portanto, será fácil encontrar-me.
Após uma saudação que o curvou ligeiramente, o médico grego, de mãos no peito, afastou-se, enquanto Fiora, sonhadora, se juntava ao seu pai e a Bisticci, demasiado ocupados para se terem apercebido da sua rápida conversa com Demétrios. Com extrema precaução, o livreiro tinha desembrulhado um grande livro de pergaminho, enriquecido com ferragens de prata e uma cruz do mesmo metal, onde estavam engastados topázios e turquesas. Fiora ouviu-o dizer:
Um dos meus agentes conseguiu arranjar este discurso de Lysias e eu achei que tu gostarias, pelo menos, de o ver...
Com gestos de infinita doçura, Francesco pegou no livro, pousou-o em cima de uma grande estante e olhou com espanto para a cruz da encadernação:
Magnífico! De onde vem? Vejo aqui uma cruz e umas armas que, se não me engano, são abaciais?
Tu és sempre muito curioso disse Bisticci, sorrindo. Este livro veio da abadia de Einsiedeln, mas mais não digo...
Pleno de veneração, Beltrami virou as espessas folhas rangentes, sobre as quais uma mão hábil tinha acrescentado iluminuras delicadas ao texto grego.
Seja qual for o preço que me pedes, Vespasiano, fico com ele! Repara, Fiora: é admirável!
Bisticci pôs-se a rir:
Tinha a certeza que o quererias. Quanto ao preço, vou ver, mas podes levá-lo já, se quiseres.
Não queres fazer uma cópia?
Já está feita. Queres vir agora ver como está o teu César?
Com pesar, Beltrami arrancou-se à contemplação do livro, sobre o qual Fiora passava uma mão acariciadora. Ambos seguiram Bisticci até uma divisão nas traseiras da casa, que dava para o jardim. Era uma grande sala bem iluminada por grandes vidraças, diante das quais estava instalada uma fila de estantes. Por trás dessas estantes uma dezena de homens aplicava-se na transcrição fiel de alguns manuscritos. Uns reproduziam o texto, outros as grandes letras pintadas com iluminuras, outros ainda as miniaturas. Alguns desses homens eram jovens, outros mais idosos e muitos deles eram de raças diferentes. Havia um alemão de pele branca e cabelos ruivos, um grego de barba negra, um siciliano tão escuro como uma castanha e até um negro vindo do Sudão. Apenas faltava o turbante branco de Ali Aslam, o copista árabe e o seu lugar estava vago...
Geralmente, Fiora gostava muito de observar os copistas de Bisticci a trabalhar, mas aquele segundo encontro com Lascaris reforçara a impressão deixada pelo primeiro e provocara-lhe uma vaga angústia. Assim, olhou sem ver os dedos hábeis desenhando os arabescos, estendendo as cores finas e colocando no lugar os frágeis realces dourados. Felizmente o seu pai, debruçado sobre os ombros dos artistas e dominado por completo pelo seu amor pelos livros, louvava o seu trabalho em termos tão calorosos, que a maior parte dos rostos iluminou-se com um sorriso. Sobretudo, claro, o velho copista, que acabava de transcrever os Commentaries de César para o rico negociante e que recebeu, a título de encorajamento, uma bela moeda de ouro.
De regresso à loja, Beltrami baixou a voz:
Já conseguiste encontrar aquele famoso Psautier de Mayence, pelo qual Johannes Fust roubou os caracteres móveis de Gutenberg?
Não. O Psautier deve estar escondido algures e é impossível consegui-lo. Nem sequer estou certo de que exista uma cópia. Essa obra parece ainda melhor defendida do que a famosa Bíblia de 42 Unhas, que é a primeira obra de Gutenberg. E também não sei porquê...
Mas, enfim, devem poder ser encontradas cópias, porque esse processo foi feito precisamente para isso? Evidentemente, nada iguala a mão de um artista, mas podemos considerá-lo como uma curiosidade e é a esse título que me interesso...
Também eu. Todavia, penso que será possível, em breve, satisfazer a nossa curiosidade. Há três anos, mais ou menos, chegaram a Veneza dois homens: o francês Nicolas Jenson e o alemão Jean de Spire e tenho a certeza que levavam com eles o processo de Gutenberg...
Nesse caso, como se explica que ainda não tenham publicado nada?
A Igreja, sem dúvida... e talvez, também, o Conselho dos Dez.
Não gostam muito de novidades, em Veneza. Mas eu conto lá ir proximamente, para ver o que se passa.
Nesse caso, sê prudente! Nunca é bom, mesmo para um estrangeiro, ter contas com o Conselho dos Dez...
Dois novos clientes acabavam de entrar na loja e Bisticci apressou-se a ir ter com eles, porque se tratava de Lourenço de Médícis e do seu amigo Poliziano, entrados ao mesmo tempo. Trocaram-se saudações e cortesias de todas as espécies, mas Beltrami escondeu bem, dentro do seu manto, o manuscrito de Einsiedeln...
Viemos mesmo a tempo segredou ele a Fiora. Mais uns minutos e talvez o Lysiasme tivesse escapado...
Messer Bisticci não disse que o tinha reservado para ti?
Palavras de comerciante. Quando se trata de clientes tão importantes como Lourenço e eu, é sempre quem chega primeiro que leva as novidades...
Isso quer dizer que vais pagá-lo muito caro?
Evidentemente, mas isso não tem importância. O dinheiro não é, senão, um meio de enriquecer a vida por meio das coisas mais belas e mais raras. Quando eu morrer, terás uma herança soberba.
Por mais soberba que seja, não me será tão cara como a tua presença disse Fiora, apertando com mais força o braço do seu pai. Em todo o caso, também vou contribuir para as nossas riquezas com este soneto de Petrarca que messer Bisticci me ofereceu quando vínhamos a sair.
Mostra!
A jovem desenrolou a fina folha de pergaminho decorada com folhas de louro como era hábito nas obras do grande poeta e leu o que estava escrito:
Se isto não é o amor, que é isto, então, que eu sinto? Mas, se é o amor, por Deus, que pode o amor fazer? Se é bom, por que razão o seu efeito é tão amargo e mortal? Se é mau, por que razão os seus tormentos são tão doces?
Ao lê-lo, Fiora sentiu-se corar. O poeta respondia demasiado bem às perguntas que lhe atormentavam o espírito desde a véspera e que, durante uma grande parte da noite, a tinham impedido de conciliar o sono. Os instantes passados nos braços de Philippe tinham sido divinos, mas, devolvida à solidão, a razão e a lógica, tão caras aos seus amigos, os filósofos, esforçavam-se por combater e apaziguar o desvario do seu coração, apanhado pela surpresa. A despeito do que dissera Khatoun, que vira no gesto apaixonado do cavaleiro borgonhês uma espécie de revelação vinda do alto, Fiora acabara por se persuadir de que selongey obedecera apenas a um impulso passageiro, ao desejo de levar consigo uma recordação agradável de uma cidade que não lhe dera aquilo que ele viera buscar...
No entanto insistira Khatoun ele disse que te queria.
Disse, mas isso não significa que vá pedir a minha mão ao meu pai. Estou quase certa de que partirá sem o voltarmos a ver...
Fiora sabia muito bem que não acreditava numa única palavra e que mentia a si própria, mas era uma maneira como outra qualquer de tentar preservar a sua dor, caso, efectivamente, Philippe partisse sem que ela o pudesse ver de novo.
Entretanto, desejava saber sobre ele o maior número de coisas possível e, de tarde, conseguiu convencer Léonarde a conduzi-la ao palácio Albizzi, para ali passar uns momentos com Chiara. Na verdade, teve poucas dificuldades, porque a perspectiva de passar uma ou duas horas na companhia da inesgotável Colomba não desagradava à governanta. Sem contar com o prazer de saborear a compota de ameixa que a grande Colomba fazia como ninguém.