O que só é justo! afirmou Cornelia Donati. Mas compreendo que Hieronyma cobice essa fortuna, que, sem Fiora, vai para ela. Uma pessoa não se resigna facilmente a uma tal perda. Ainda por cima, como o seu defunto marido não era o filho mais velho, não deverá esperar grande coisa do velho Jacopo. A parte que ele lhe deixar irá para o infeliz Pietro, o que não será grande coisa para ele e para a mãe...
Fiora não dizia nada. Estava hirta de horror, só de pensar que poderia ir parar às mãos daquela mulher. Daquela mulher, que falara como se estivesse muito segura de si. Felizmente, Léonarde apercebeu-se e envolveu-lhe os ombros com um braço protector:
Não ponhais macaquinhos no sótão, meu coração! Acontece a toda a gente ter sonhos impossíveis. O de donna Hieronyma não passará do que é: um sonho...
Mas ela própria não estava muito tranquila, porque não gostara da pequena frase, que deixava supor que Beltrami podia não ser o pai de Fiora. No entanto, tranquilizou-se: para saber a verdade, seria preciso que Hieronyma fosse o diabo, ou, pelo menos, sua filha. E prometeu a si mesma dar uma palavra a Beltrami.
Desejoso de aliviar uma atmosfera que julgava nefasta para o seu comércio, o bom Landucci ofereceu às suas damas um dedo de vinho de Chipre, para as fazer esquecer o momento desagradável que acabavam de viver em sua casa.
Eu achei isto divertido disse Chiara.
Eu não! disse o boticário. Donna Hieronyma bem pode procurar outro fornecedor. Não a receberei mais.
Nesse caso, não há qualquer razão para que eu não compre essa cor encarnada? perguntou Cornelia, que não perdia de vista a causa da batalha. Conquistei-a com luta, parece-me.
Também me parece disse Landucci, rindo. E ordenou a um dos seus rapazes que embrulhasse o pequeno frasco.
Depois das compras feitas, Fiora e Léonarde, Chiara e Colomba separaram-se. Já era tarde e se o palácio Beltrami era próximo, o caminho ainda era longo para as habitantes do palácio Albizzi. A noite estava a chegar. Cornelia Donati partiu com Chiara e Colomba, ao mesmo tempo que o boticário dava ordem aos seus criados para fecharem a loja. Ele tinha que ir à Senhoria, a fim de se encontrar com o prior do seu bairro para uma questão delicada: o seu vizinho da casa funerária tinha-se arrogado o direito de vender certas drogas destinadas ao embalsamento dos seus clientes, drogas essas que faziam parte da exclusiva actividade do boticário. Landucci tinha de se despachar, porque aquele prior era seu amigo e talvez não estivesse apto a socorrê-lo dentro de
15 dias. Com efeito, os priores só eram eleitos por dois meses, circunstância que fazia Florença viver numa perpétua agitação eleitoral...
Também tenho que ver messer Francesco confiou ele a Fiora à guisa de adeus mas vou amanhã aos entrepostos dele na via Calimala... Certamente que ele me apoiará.
O Ângelus soou, acompanhado pelo estalido de centenas de taipais de madeira que, um pouco por toda a parte, os comerciantes ou os seus rapazes aplicavam sobre as portas das lojas. Os elegantes passeantes da ponte Santa Trinita começaram a abandonar o local para se dirigirem a outros locais de divertimento. Um grupo barulhento rodeou um homem jovem, pequeno e magro, mas vestido rebuscadamente com uma casaca de cetim branco sobre uns calções de veludo branco com renda prateada. Uma capa, botinas e um gorro de veludo rosa, este último enfeitado com uma grande pluma de garça-real, compunham um fato diante do qual todos os outros estavam extasiados. Com uma corrente de ouro da qual pendia uma pesada medalha e dedos em todos os anéis, o jovem elegante avançava com passos contados, virando a cabeça para todos os lados, para ver se recolhia suficiente tributo de admiração.
Fiora também o vira. Puxando bruscamente Léonarde pela manga, fê-la passar consigo sob o arco de uma casa, abrigada por uma estreita ruela.
Que vos deu? protestou a velha dama.
Não vedes o que está a acontecer além? Aquele vaidoso do Domenico Accaiuoli com o seu bando de cortesãos?
Que vos fez ele? Pensava que era um dos vossos amigos? Ele não vos fez a corte?
Achais que aquela espécie de rapaz sabe fazer a corte a uma rapariga? Far-me-ia melhor a corte se eu fosse um rapaz como ele. Ele quer uma esposa afortunada, sem dúvida, mas não tenho a certeza de que conseguisse fazer-lhe filhos. Em todo o caso, a pobre não o veria muitas vezes transpor a porta do seu quarto...
Atordoada, Léonarde olhou para Fiora com a expressão de uma galinha que se apercebe, subitamente, que chocou um pato:
Onde fostes buscar isso? Não fui eu que vos ensinei essas coisas! Fiora pôs-se a rir e apertou com mais força contra si o braço da governanta. ”
Vós sois demasiado decente! Foi Chiara que me disse. O seu primo Tommaso faz parte do bando de Domenico. E, entre raparigas, diz-se...
Com efeito, vejo que sabeis mais coisas do que eu imaginava disse Léonarde vagamente escandalizada.
Não façais essa cara! Não gostais mais de Domenico do que eu o detesto. Podeis ficar certa de que, quando me casar, será com um homem digno desse nome.
Instantaneamente, o seu espírito evocou a poderosa silhueta de Philippe de Selongey e, ao recordar o beijo que recebera, sentiu um pequeno arrepio já familiar. Experimentava-o sempre que evocava aqueles momentos inolvidáveis que a tinham perturbado, aqueles momentos que nunca mais, sem dúvida, voltaria a sentir...
Se não vedes inconveniente, talvez seja melhor voltarmos para casa rabujou Léonarde o caminho parece livre. E está tanto frio nesta ruela; sem contar com os odores das latrinas. Pelo menos, messer Domenico cheira bem...
Ambas saíram do seu esconderijo e retomaram o caminho:
Demasiado bem disse Fiora. A mãe dele e as irmãs não andam tão perfumadas. Um homem deve cheirar a sabão, sem dúvida, mas também a couro, a erva fresca... e até um pouco a cavalo acrescentou ela sonhadoramente, dando livre curso às suas recordações e esquecendo que não estava só.
Também foi donna Chiara que vos ensinou isso? perguntou Léonarde cada vez mais siderada.
Não disse Fiora sorrindo ingenuamente à sua doce recordação. É apenas o que eu penso.
Enquanto isso, numa grande casa ocupando o ângulo da via Calimala e do Mercato Nuovo, desenrolava-se uma cena estranha no primeiro andar, na grande sala severamente apainelada de carvalho escuro, de onde Francesco Beltrami dirigia os seus numerosos e importantes negócios: uma dessas cenas em que o freio da cortesia retém a violência dos sentimentos e não lhe permite, senão, que se traduza em palavras. Sentado numa cadeira de couro de espaldar por trás da grande mesa iluminada por um candelabro de bronze de seis braços, o negociante afrontava Philippe de Selongey, que, de braços cruzados no peito, se mantinha simplesmente encostado a um armário.
Os dois homens observavam-se como dois duelistas, os olhos de um, dourados pelo reflexo das chamas, mergulhados nos do outro, sombrios e preocupados. E o silêncio reinava, cortado de longe a longe pelo rolamento de uma carroça, pelo passo de um cavalo ou pelos gritos das crianças que brincavam na praça... Beltrami parecia ouvir morrer nele mesmo o eco das últimas palavras do cavaleiro borgonhês. Por fim, com um sorriso, levantou-se e dirigiu-se para a chaminé de pedra cinzenta e ali aqueceu as mãos, esfregando-as suavemente, como se as lavasse nas chamas...
Curiosa história, a que acabais de me contar, senhor conde disse ele docemente e nós, os de Florença, gostamos de ouvir boas histórias... mas não vejo em que é que ela me diz respeito.
Diz-vos respeito inteiramente: está escrito claramente nas feições do rosto da vossa filha.
Deixai a minha filha de fora desta conversa! Ela começou, se bem me lembro, pelo... embaraço em que vos encontrais, sem poderdes voltar para junto de monsenhor da Borgonha sem o dinheiro que ele solicitou...