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Monsenhor Carlos nunca solicita! rugiu Selongey.

Perdoai-me essa palavra, que falta, com efeito, nas leis elementares da diplomacia! Digamos: que ele desejava obter do banco Médico, para recrutar em Itália tropas mercenárias. Dinheiro que monsenhor Lourenço teve de recusar por lealdade para com o rei Luís de França, com quem, há muito, a sua família fez aliança. E vós desejais estabelecer comigo um acordo análogo. E eu tive que vos lembrar que ° dirijo, eu, uma grande casa bancária e...

A mim não me enganais, Beltrami! Vós também sois banqueiro, assim como sois, também, armador. Para ser mais claro, a vossa fortuna é, talvez, tão grande como a dos Médicis. Mas nós já regulámos essa questão e não percebo por que razão voltais a ela. Dediquemo-nos antes a esta história antiga que eu tive a honra de vos contar...

E que eu apreciei, mas que...

Basta de astúcias, messire Francesco! Cheiram de mais a loja para me agradarem. Respondei apenas a esta pergunta: Estáveis em Dijon, há pouco mais de 17 anos, no dia em que na praça do Morimont caíram as cabeças de Jean e Marie de Brévailles? E olhai que faço apelo à vossa honra, no sentido de que uma mentira... é uma mentira inútil.

O rosto de Beltrami ficou hirto, até não parecer mais do que uma máscara, por trás da qual o seu espírito enlouquecia. Quando aquele jovem entrara naquela casa, adivinhara, pressentira, que ele trazia consigo a infelicidade. Mas era preciso responder...

Estava, com efeito disse ele firmemente. Fiz muitas vezes escala em Dijon no decurso das minhas viagens a Paris e às cidades flamengas. Acontece que gosto dessa cidade, se bem que nunca lá fique durante muito tempo. Parto sempre no dia seguinte.

Mas dessa vez não partistes só. Levastes convosco uma criança recém-nascida, uma rapariguinha abandonada. Aquela a quem chamais agora filha. Negai-lo?

Uma brusca cólera apoderou-se de Beltrami, varrendo toda a reserva que impusera a si próprio longos minutos antes:

E depois? Não creio que isso vos diga respeito! Que quereis dizer, no fundo, com esses subentendidos, essas perguntas, que cheiram a polícia? Que tendes vós a ver com aqueles dois infelizes que um pouco de piedade não permitiu que vivessem e com aquela criança que, com um pouco de humanidade, teria conservado, ao menos, uma mãe e que eu salvei do ódio de um homem infame que ia esborrachála sobre uma tumba ignóbil, para onde a pretensa justiça dos vossos duques tinha atirado os pais? Pensais que sou assim tão simples que não seja capaz de ver o vosso jogo com clareza? Quando entrastes aqui, falastes-me de dinheiro e depois, subitamente, contastes-me essa terrível história, que desenterrastes sabe o diabo aonde...

Que quer isso dizer?

Que a despeito das vossas esporas douradas de cavaleiro, a despeito dessa ordem ilustre cuja insígnia está suspensa do vosso peito, não sois mais do que um vigarista, messire de Selongey!

Philippe ficou lívido e, maquinalmente, levou a mão aos copos da espada que trazia à cintura:

Insultais-me!

Não. Trato-vos segundo o que mereceis! E agora, saí! Não tereis de mim um único florim!

De pé face a face, estavam tão próximos, que um podia sentir o hálito um pouco ofegante do outro, mas o objectivo de Selongey não era encostar aquele homem à parede. Virou-se, afastou-se na direcção da janela que dava para a praça agora quase na escuridão e, por um instante, observou o vaivém dos habitantes daquela cidade estranha, onde a nobreza de nascimento não significava nada e não tinha, obrigatoriamente, direito ao respeito. Apenas o dinheiro contava e o homem que estava na sua frente era um dos mais ricos.

Disse-vos que saísseis! repetiu Beltrami com uma voz onde havia algum cansaço...

Não. Eu exprimi-me mal e peço-vos perdão. Esperava, com efeito, interessar o homem de negócios que sois nos do meu senhor, que é o mais nobre príncipe do Ocidente. Ele ter-vos-ia reconhecido regiamente... à altura da coroa que cingirá um dia. Mas não foi unicamente isso que vos vim pedir esta noite...

Que quereis, então?

Que me concedais a mão da vossa filha. Quero desposá-la...

O espanto deixou o negociante sem voz e com a impressão desagradável de que as paredes começavam a girar à sua volta. Foi até um armário dissimulado na parede e tirou dele um frasco de vinho de Chiantt e uma taça de prata, que encheu e esvaziou quase com um único movimento. Sentiu-se, então, melhor para afrontar a nova batalha que se aproximava.

Meu Deus! observou Philippe com um meio sorriso. Não esperava causar-vos uma tal emoção!

Deixai a minha emoção em paz. Quereis casar com Fiora? Vós?

Sim, eu.

Quando acabais de me dizer que ignorais tudo sobre as suas origens, nobres sem dúvida, mas manchadas infamemente pela mão do carrasco?... Pelo menos segundo as leis do vosso país e da vossa casta.

Segundo as leis de todos os países e de todas as castas. Acreditais que a vossa fortuna seria capaz de a salvar do desprezo se se soubesse aqui, nesta república incrível, que ela é fruto de um incesto e de um adultério que terminou no cadafalso, condenado ao mesmo tempo pela Igreja e pelo príncipe?

Francesco Beltrami sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha e voltou para o fogo como para um amigo seguro. Aquele demónio tinha razão e sabia-o.

E vós disse ele amargamente investido da confiança de um grande príncipe, vós, conde de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro vós, que sois sem dúvida um dos primeiros no vosso país, quereis por mulher esta criança, cuja nascença, vós mesmo dizeis, está marcada pela infâmia. Porquê?

Não procurarei esconder-vos a verdade disse Selongey rudemente. Primeiro, porque a amo... Ora vamos! Vós só a vistes duas vezes: na giostra e no palácio Médicis...

Encontrei-a uma terceira vez na igreja da Santa Trindade. Mas um só encontro era suficiente. A sua beleza... apertou-me o coração. Foi como se tivesse ficado encantado...

E pensais que isso é amor? Que basta um instante para...

Mudar a vida de um homem? Devíeis ser o último a duvidar disso. Ou então, explicai-me por que razão vós, jovem, rico, livre de qualquer laço, carregastes a vossa vida com a filha de uma gente que não conhecíeis, que apenas entrevistes na hora da morte? Marie de Brévailles era muito bela, não é verdade? E vós viste-la morrer...

Beltrami fechou os olhos, tentando reter as lágrimas que lhe vinham aos olhos ao recordar aquela hora terrível, em que o amor da sua vida tinha sido fulminado. Enxugou-os com as costas de uma mão raivosa...

Falastes de duas razões... Qual é a segunda?

Quero o seu dote para as armas de monsenhor Carlos! Seguiu-se um silêncio, rompido ao cabo de um instante pelo riso sem alegria de Beltrami:

Eis finalmente a grande palavra. O dinheiro! Mas não vos darei Fiora. Não vos deixarei levá-la para o vosso bárbaro país, que só a esmagaria. Ela é uma flor delicada, criada sob o sol, com cuidados infinitos. Até aqui só conheceu a alegria, a beleza, as artes, as letras e até as ciências. Ela tem a sabedoria e o coração de uma rainha. Enquanto eu for vivo, esta obra feita com as minhas mãos e com a minha ternura não será destruída. Recuso separar-me dela.

Mas eu não vos separarei dela. Tal nunca foi minha intenção disse Philippe docemente.

Não compreendo. Que quereis dizer?

Nós estamos em guerra e esta guerra é sem quartel. Borgonha vencerá ou desaparecerá. Em tais condições, é impossível levar uma mulher comigo. Onde estaria ela melhor, senão junto do seu pai? Se ma concederdes, casar-nos-emos secretamente, mas sem que seja possível contestar o casamento. No dia seguinte, partirei... e nunca mais me vereis.