Condenados às penas do inferno? Sois Deus, por acaso?
Esta... esta mulher... foi-me dada em casamento... arquejou o homem meio estrangulado.
Entre nós, a Igreja diz que o casamento vale até que a morte separe os cônjuges. Foi o que aconteceu. Ide-vos!
O jovem ia atirar o homem do cadafalso abaixo quando o padre se interpôs. Docemente, mas firmemente, obrigou Francesco a largar a presa:
Dissestes o que era preciso dizer. Deixai-o ir, agora! E vós, Regnault du Hamel, abandonai esse ódio e pedi perdão ao Todo-Poderoso!
Massajando a garganta dorida, a personagem desagradável, depois de um olhar mortífero lançado a Francesco, desceu as escadas. Quando chegou lá abaixo, considerando-se suficientemente afastado daquele inimigo inesperado, mostrou-lhe o punho, zombando:
Eu não sei quem tu és, estrangeiro, mas, a despeito do teu ouro, não poderás fazer com que esta fêmea não seja atirada para a fossa dos pestilentos com o seu cúmplice. Os soldados encarregar-se-ão disso!
Com efeito, o sargento que assistira à execução reunia os seus homens em redor da carroça que mandara avançar. Com o olhar, Francesco interrogou o padre. Este abanou a cabeça com ar desolado:
Infelizmente, ele tem razão! Estas pobres crianças não têm direito a uma sepultura decente. A sentença foi cruel a esse ponto. E eu até tive muita dificuldade para obter o direito de as acompanhar. Mas, mesmo que mo tivessem proibido, teria vindo na mesma. Não sabeis... mas eu vi-os nascer, tanto um como o outro.
Então, eu vou convosco. Deixai-me ajudar-vos.
Por que razão? Eram vossos conhecidos?
Vi-os hoje pela primeira vez, mas sinto que tenho de o fazer. Há qualquer coisa que me leva a fazê-lo.
Receio que vos possais arrepender quando souberdes porque foram condenados e qual foi o seu crime.
Francesco encolheu os ombros.
Eram irmão e irmã... e amavam-se... demasiado! Disseram-me. Mas, estamos a perder tempo.
Entre os dois envolveram os corpos supliciados nos seus sudários e levaram-nos para a carroça. De repente, Francesco apercebeu, abandonado sobre o pano negro, o pequeno chapéu de renda; agarrou nele. Ao sentir nas mãos aquele ornamento encantador que ainda há pouco adornava a beleza delicada da jovem morta, sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Rapidamente, escondeu-o junto do coração, abrigado pelo manto e juntou-se à sua gente que continuava à espera na entrada da praça.
Esperai-me no albergue da Cruz de Ouro disse ele a Marino. Eu já lá vou ter. Nem uma palavra acerca do motivo da minha demora!
Não me conheceis? Ninguém dirá nada. Tendes a certeza que não precisais de ajuda?
Tenho. Tenho uma arma e ouro. É mais do que o necessário para me defender em caso de necessidade.
Levando o seu cavalo pela rédea, Francesco seguiu a pé a carroça, na qual o padre, sentado entre os dois corpos, retomara as suas orações. Transpuseram a porta de Ouche e os fossos e depois obliquaram na direcção de uma construção meio arruinada, que se erguia não longe da estrada de Beaune, entre as antigas fábricas de curtumes e um campo de estrume. O local era deserto e malcheiroso; no entanto estava lá um homem em pé, apoiado a uma enxada, o nariz e a boca escondidos por um lenço atado no pescoço. A seus pés, o buraco que tinha escavado na terra viscosa punha uma mancha negra na paisagem nevada. Foi na direcção dele que se dirigiu o pequeno cortejo que o senhor du Hamel seguia a distância. Ao ver o buraco lamacento, no qual apareciam fragmentos de ossos, Francesco não pôde reter o seu desgosto: aproximou-se do sargento.
Será mesmo impossível encontrar outra sepultura, em vez deste buraco infecto? perguntou ele levando a mão à bolsa. O soldado reteve o gesto esboçado:
Não, messire. O que pedis é impossível, porque isto foi ordenado pela justiça. É necessário que ela seja cumprida, mas acrescentou ele em voz baixa senti-vos feliz por os enterrarmos. Se tivéssemos escutado o marido, estes infelizes teriam sido pregados pelos sovacos ao patíbulo que vedes além, à beira da estrada, para apodrecerem lentamente ao vento, à chuva e sob as pedradas que os miúdos atiram sempre sobre os corpos que têm este triste fim.
Francesco fez sinal de que tinha compreendido e recuou. Alguns instantes mais tarde, aquela fossa terrível fechava-se sobre os despojos daqueles dois seres jovens e belos que teriam podido viver longos anos felizes e despreocupados, se o amor não lhes tivesse estendido uma das suas mais terríveis armadilhas: a paixão contranatura.
Subitamente, o céu pareceu mais cinzento a Francesco, como se acabasse de perder uma parte da sua luz e o frio tornou-se mais áspero. O jovem virou-se para o velho padre, que apertava friorentamente o seu manto negro em redor dos ombros magros:
Gostava de falar convosco, padre. A minha gente espera-me na Cruz de Ouro. Vinde comigo, temos os dois uma grande necessidade de recuperar as nossas forças.
O velho homem quis recusar, mas não tinha forças para contrariar o florentino, uma vez decidido a qualquer coisa. A despeito dos protestos, viu-se sentado em cima do cavalo daquele amigo caído do céu, que segurou nas rédeas e se dirigiu a passo para a cidade, para onde já regressavam, também, os soldados e a carroça. Mas, ao passarem por Regnault du Hamel, que parecia esperar a sua partida, o jovem escarrou-lhe violentamente aos pés. Nunca sentira tanta vontade de matar... nem semelhante asco por um ser humano. No entanto, uma hora antes, nunca tinha visto aquele homem. Fora preciso aquele encontro, na volta do caminho, com um rosto de anjo caminhando para o martírio, para que o seu próprio universo se tornasse num pesadelo, onde, de Maneira inexplicável, se viu perfeitamente à-vontade. Aquela gente tinha invadido, com o seu amor e sofrimento, a sua existência agradável de epicurista e diletante um pouco egoísta. E nem sequer sabia os seus nomes...
Eles chamavam-se Jean e Marie de Brévailles e eu chamo-me Antoine Charruet, sou abade da aldeia e capelão da família. Como vos disse ainda há pouco, vi-os nascer e eram-me tão queridos como se fossem meus próprios filhos. A infância deles desenrolou-se no castelo paternal, uma bela e rica mansão que domina as águas perigosas do Doubs. Os pais deles, Pierre de Brévailles e Madeleine de la Vigne vivem nele como proprietários rurais e como fiéis súbditos do nosso duque Filipe que Deus guarde, se bem que não ouça sempre os apelos de misericórdia...
O padre benzeu-se e depois, pegando na sua taça, bebeu algumas gotas de vinho. Ele e Francesco tinham acabado a refeição que o florentino mandara servir no seu quarto, onde um bom fogo fazia com que ali reinasse um calor agradável. O rosto do ancião, tão pálido ainda há pouco, ganhara cor, mas a sua mão tremia e era visível que as lágrimas não estavam longe.
Preferis repousar um pouco, padre? perguntou docemente Francesco. Receio que este relato vos seja ainda mais penoso.
Não. Não, pelo contrário, faz-me bem falar deles... tentar... explicálos a alguém que tenha compaixão... Os Brévailles tinham ao todo quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Jean, o mais velho, era três anos mais velho do que Marie, mas desde tenra infância que era possível ver que uma profunda afeição, exclusiva e tenaz os unia. Os pais, assim como eu, não se preocupavam, limitando-se a sorrir. Chamavam-nos «gémeos», porque se pareciam de Maneira espantosa e porque, entre todos os irmãos, eram de uma beleza extraordinária, como pudestes ver, messire. Foi um capricho da natureza e nós víamos nisso a razão para a preferência de Jean por Marie e de Marie por Jean. Os Brévailles sentiam-se orgulhosos da sua beleza e citavam como exemplo a ternura mútua, sem que por um instante pensassem que esse amor se tornasse, com os anos, menos puro. Aliás, que pais teriam semelhante ideia?