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Se não soubesse, achais que lhe teria dado Fiora? Lourenço de Médicis recusou-lhe o empréstimo que ele veio pedir para o duque da Borgonha. A mão da minha filha... e o seu dote foram o preço do seu silêncio! Um belo preço, como vedes!

Um homem com aquele nome e aquela qualidade, baixar-se a um negócio tão vil? Mal consigo acreditar. Os Selongey sempre foram gente de carácter rude, difíceis de conviver, mas de uma lealdade sem falha para com os seus duques e incapazes de uma baixeza. E porquê? Por ouro? Eles nunca foram pobres e os seus privilégios devem permanecer intactos...

É a sua única desculpa: ele não queria este ouro para ele. Não o ouvistes? Mas agora, graças a Deus, foi-se embora e para sempre! Nunca mais o veremos!

Nunca mais? Ele tem intenção, então, de abandonar uma jovem esposa pela qual parece, no entanto, apaixonado...

Não, mas tem intenção de se deixar matar na guerra. Ele ama Fiora, ou, pelo menos, é o que ele diz e talvez seja verdade, mas acha que, ao casar com a filha de uma gente desonrada, feriu a grandeza do seu nome.

Casou com a filha de um dos maiores homens de Florença. Não tem razão para se envergonhar, parece-me, por mais Selongey que seja? Ninguém, aqui, ouviu falar, nunca, dos Brévailles...

Sem dúvida, mas para ele a mancha é insuportável.

Como é que ele soube?

Palavra de honra que não sei. Diz que se sentiu surpreendido com a semelhança. Irmão e irmã, os jovens Brévailles eram muito parecidos. A filha de ambos é o retrato, tanto de um como do outro. E agora, peço-vos, dame Léonarde, não falemos mais desta personagem que eu desejo esquecer o mais depressa possível.

Achais que conseguireis o mesmo por Fiora? Ela entregou-se a ele demasiado espontaneamente para que o seu coração ainda lhe pertença e ela não é daquelas que amam duas vezes, era capaz de o jurar. Ela vai sofrer...

Agora não! Ainda não! Ela sabe que ele teve de partir para se juntar ao seu duque diante de Neuss. Vai esperar por ele. Será então, quando souber da sua morte, que vai sofrer. Só desejo que a espera não seja muito longa: a dor será, talvez, mais violenta, mas mais breve...

Mas talvez venha a ser longa. Um cavaleiro não tem o direito de se entregar à morte, sob pena de perder a alma e, de certa maneira, a honra. É preciso que morra defendendo-se, que encontre quem seja mais forte do que ele. E a acreditar nas histórias do seu escudeiro, um tal adversário não é fácil de encontrar... Concluístes um estranho negócio, ser Francesco! Talvez Deus se divirta a contrariá-lo...

Veremos. Por agora, alegremo-nos por a nossa Fiora não nos ter sido levada. Poderemos continuar a rodeá-la, a protegê-la.

Ela nunca usará o nome do marido?

É evidente que sim. Desde que a conjuntura política o permita e sem ofender os Médicis, declararemos o casamento.

E se o pudermos declarar ao mesmo tempo que a morte do marido, melhor, não é verdade? disse Léonarde com uma amargura que não conseguiu evitar. Acabava de compreender que, se Philippe não tivesse exigido a sua noite de núpcias, Beltrami teria achado o incrível negócio a seu gosto e descobriu que o melhor dos homens podia abandonar-se a um egoísmo impiedoso. Francesco Beltrami devia ter sofrido um martírio naquela noite em que Fiora se entregara ao desejo de um homem, mas, agora, só queria pensar na felicidade que representava poder ficar com a sua filha junto de si para sempre...

Bem, tudo acabou bem! suspirou ela. Mas chegou a hora de ir para o pé dela, para quando acordar. É possível que ela não ache esta manhã tão feliz como vós...

Léonarde sentia grande dificuldade em dissimular a cólera. Com quantas lágrimas iria a sua criança pagar uma felicidade que só durara três dias e uma noite? Beltrami não compreendia que ela nunca mais seria a mesma uma vez passada a soleira do amor físico? E se viesse um filho?

Espero que isso não aconteça respondeu ela para si própria. Se for mãe, Fiora nunca conseguirá esquecer este marido de poucas horas e o esquecimento é o melhor que lhe pode acontecer.

Mas não acreditava. Lentamente, sempre com as mesmas precauções, regressou ao quarto onde a jovem continuava a dormir e puxou uma cadeira para o pé do leito, para ali aguardar o seu despertar. Não queria que ela abrisse os olhos para um quarto vazio. E, com efeito, quando Fiora acordou, foi o rosto familiar de Léonarde que ela viu. Ofereceu-lhe um sorriso radioso:

Estáveis aí? Já é tão tarde?

Quase meio-dia. Dormistes bem?

Mas Fiora já procurava alguém naquele leito subitamente tão grande, mas que guardava ainda sinais de outro corpo:

Philippe!... Onde está ele?

Léonarde saiu da cadeira e sentou-se perto da jovem.

Partiu disse ela tão docemente quanto pôde, subitamente horrorizada ao ver os olhos de Fiora, uns instantes antes enublados, iluminarem-se rapidamente e arregalaram-se:

Partiu?... Mas não para...

Para se juntar a monsenhor o duque da Borgonha. Abandonou esta casa.

E vós deixastes-me dormir?

Nunca Fiora olhara para a sua velha amiga com aqueles olhos, ardendo de cólera.

Ele não quis que vos acordassem. Temia, creio, o momento sempre difícil da partida. Limitou-se a cortar, para levar com ele, uma mecha dos vossos cabelos...

Ele tinha mesmo de ir já? Não podia esperar mais algumas horas? Fomos tão felizes juntos!... Mas talvez ainda não esteja longe...

Fiora saltou transtornada do leito e, sem mesmo pensar em cobrir-se com uma roupa qualquer, correu à janela, que abriu de par em par. O céu estava cinzento e o vento varria a chuva fina que caía desde o meio da manhã, mas Fiora não quis saber:

Philippe! chamou ela em voz alta. Philippe! Regressa!

Beltrami, que dava um passeio pelo jardim para acabar de expulsar os vapores da sua noite maldita, ouviu os seus gritos, levantou a cabeça e ficou confuso com o que viu: uma mulher nua, desgrenhada, gritando desesperada ao vento húmido. Uma mulher que não era, não podia ser a sua filha. A voz quente e doce de Fiora não poderia emitir aquele clamor rouco de leoa chamando o seu macho...

Os gritos não cessavam, a imagem impudica e enlouquecida não se apagava. Então, como um cego e com as duas mãos nos ouvidos para não ouvir mais, o infeliz enfiou-se através dos arbustos despidos pelo Inverno, até ao abrigo precário, mas surdo, de uma pequena gruta, onde, para um tanque, corria água de uma cabeça de leão. Ali, deitado na terra húmida, Francesco Beltrami chorou as suas ilusões perdidas. O estrangeiro só pedira uma noite, mas essa noite fora suficiente para fazer de Fiora uma outra mulher, a mulher «dele». E a criança de outros tempos nunca mais regressaria...

CAPÍTULO V

HIERONYMA

Tu mudaste, Fiora... Há dias que te observo e de cada vez isso me parece mais evidente. Tinha que to dizer, hoje.

Fiora sorriu para a sua amiga. O rosto gentil de Chiara tinha, com efeito, uma ruga de preocupação, que lhe era pouco usual e que lhe dava uma certa gravidade.

Em que é que eu mudei assim tanto?

Ris-te menos do que antigamente e vejo que por vezes, quando estamos juntas, pareces pensar noutra coisa. Não respondes às perguntas que te faço, ou então respondes por portas e travessas. Mas há outra coisa mais grave...

Mais grave? O que é, meu Deus?

Antes de ontem, quando, perto do Baptistério, estávamos a ouvir a história do contador de fábulas, Giuliano de Médicis, que estava de passagem com alguns amigos, veio cumprimentar-nos. Habitualmente, quando o vias ficavas vermelha como um tomate. Desta vez, mal olhaste para ele, o que o deixou vexado, creio.