Seguiu-se um silêncio, no fundo do qual Fiora pensou ouvir a respiração subitamente mais forte do seu pai. Sentiu vontade de entrar, mas foi incapaz, retida por uma força mais poderosa do que a sua vontade. A curiosidade, sem dúvida, à qual se misturava uma espécie de terror... Por fim, Beltrami suspirou e com a ligeira insolência de um homem a quem importunam, continuou:
Esse tudo quer dizer o quê?
É mesmo necessário que te explique? Empalideceste, Francesco, o que quer dizer que adivinhaste qual é o assunto de que te quero falar! Não acreditas? Encolhes os ombros?... Não te incomodes: eu vou falar claro. A tua preciosa Fiora, que tu educas como uma princesa, não é tua filha. Tu nunca tiveste nenhuma aventura com dama nenhuma fora das fronteiras deste país. Ela é fruto de amores incestuosos e adúlteros, filha de gente condenada à morte pela justiça da Borgonha pelos seus crimes e tu apanhaste-a da lama...
Se a casa tivesse caído sobre Fiora o choque não teria sido maior. A jovem precisou, primeiro, de se agarrar a uma tapeçaria e depois às costas de uma cadeira vizinha, para não cair. A voz maldosa de Hieronyma ainda silvava nos seus ouvidos com toda a carga de ódio que destilava. A de Beltrami, entretanto, continuava fria:
E, naturalmente, tu tens provas do que afirmas?
Tenho melhor: uma testemunha... ocular. Alguém que está pronto a tudo dizer para me agradar.
Beltrami acabava de compreender. O seu espírito rápido já tinha feito a aproximação. Hieronyma vivia a maior parte do tempo em Montughi, na propriedade do seu sogro e, perto dessa mesma Montughi, Marino, em quem investira toda a sua confiança, dirigia a sua propriedade agrícola. Marino, que nunca admitira a adopção da criança e a quem tivera de atar a língua com um juramento prestado num altar e numerosos benefícios. Ao mesmo tempo, lembrava-se de certos rumores, muito discretos para dizer a verdade e que ele repelira com desdém, acerca da conduta daquela viúva polpuda, que, privada do marido, procurava consolação. Ainda era bela e capaz de seduzir um homem como o antigo chefe recoveiro...
Hieronyma tomou o seu silêncio por uma espécie de desalento e ironizou:
Vejo que compreendeste, meu belo primo. Agora já sabes como sou generosa ao propor um casamento entre o meu filho e a tua bastarda, que, assim, poderá gozar a tua fortuna até ao fim dos seus dias. A sorte dela é que, vê lá tu, o meu Piero está apaixonado por ela e quere-a para mulher. E eu não quero que o meu filho se sinta infeliz. Ele esquecerá a sua desgraça nos braços da tua bela feiticeira, que não terá mais nada que fazer senão dar-lhe filhos bonitos...
E se eu recusar?
Não recusarás. Sabes muito bem que posso, já amanhã, depositar uma queixa contra ti por teres mentido e achincalhado a Senhoria, ao fazeres de um dejecto da humanidade, que devia ter sido destruído à nascença, uma florentina.
Incapaz de se conter por mais tempo, Francesco deixou-se levar pela cólera:
E tu és capaz de apresentar a tua testemunha? Não te esqueças de uma coisa, Hieronyma. Correm rumores acerca de ti. Diz-se que não respeitas a tua viuvez, assim como a casa do teu sogro. Basta que Marino Betti confesse que é teu amante e poderás saber quanto pesa a justiça pessoal do velho Jacopo. Ele não brinca no capítulo da honra.
Mas talvez fique feliz por ver entrar para a família Pazzi uma fortuna da importância da tua. Ele já não é assim tão rico e suporta-o mas. Creio que me ajudaria, pelo contrário, com todas as suas forças... mas, claro está, o casamento não se realizaria. Não o admitiria. Simplesmente, depois da tua condenação e privação dos teus bens, que me seriam entregues como tua herdeira natural, a tua Fiora seria entregue a Piero, para que ele se divertisse... após o que nos desembaraçaríamos dela atirando-a para um bordel! Como vês, tens todo o interesse em aceitar a minha proposta. Em seguida, prometo-te que formaremos uma família feliz... e sem história!
Sai daqui!... Fora da minha vista!
Decididamente, não és razoável. Mas eu penso que uma longa noite de reflexão te fará ver onde está o teu interesse. Amanhã, por volta desta hora, virei buscar a resposta. Desejo-te uma boa noite.
Um arrepio de horror galvanizou Fiora e devolveu-lhe as forças. Compreendendo que a mulher ia sair e não querendo ser surpreendida à escuta, escondeu-se por trás de uma tapeçaria, reprimindo ao máximo os batimentos do seu coração. Um suor frio molhava-lhe a fronte e as costas, como se o abismo terrível do inferno acabasse de se abrir na sua frente. Afastando ligeiramente a pesada tapeçaria, viu Hieronyma sair da sala do Órgão, sem pressa. Segura da sua vitória, pavoneava-se com arrogância, pousando sobre os móveis e objectos preciosos, pelos quais passava, um olhar ávido de proprietária.
Pela primeira vez na sua jovem vida, Fiora sentiu vontade de matar, de destruir aquela mulher odiosa, percebendo por que razão a ameaçara em casa de Landucci. Saindo sem ruído do seu esconderijo, pegou num pesado candelabro de bronze e avançou lentamente na direcção de Hieronyma, que parara para admirar as peças de joalharia dispostas em cima de uma credencia, mas, como se tivesse adivinhado que um perigo se aproximava, a dama Pazzi saiu bruscamente da sala sem se virar, no momento exacto em que Beltrami entrava nela.
O negociante viu Fiora armada, prestes a lançar-se atrás de Hieronyma e compreendeu o que ela queria fazer. Exclamou:
Não Fiora! Não faças isso!
É ela ou nós, pai! Deixa-me fazê-lo!
Então, ele correu para ela, arrancou-lhe o candelabro e depositou-o em cima de uma arca. Desesperada, Fiora viu que ele envelhecera dez anos e que havia lágrimas nos seus olhos. Então, atirou-se-lhe ao pescoço e apertou-o contra si, chorando ambos sobre o que a abominável Hieronyma acabava de destruir, de sujar. Foi ali que Léonarde, que procurava Fiora, os encontrou.
Que se passou? perguntou ela. Acabo de me cruzar com donna Hieronyma e ela ordenou-me, chamando-me de velha alcoviteira, que começasse a fazer as malas!
Estamos à beira da catástrofe, minha pobre Léonarde disse Beltrami. Aquela mulher é amante de Marino. Ele disse-lhe tudo e está pronto a testemunhar contra mim... a menos, evidentemente, que eu case Fiora com o filho dela!
Mas ela já é casada, parece-me? É preciso dizer-lho.
Isso é a última coisa a fazer. Resta-me uma ténue esperança de salvação, que é ir contar tudo a monsenhor Lourenço. Tem respeito e amizade por mim, ao passo que detesta os Pazzi. Evidentemente, o casamento torná-lo-ia furioso, mas isso não lhe vou eu dizer...
Fiora, que se mantivera abraçada a Beltrami, afastou-se dele e olhou-o com uns olhos plenos de angústia:
Pai!... É verdade que não sou tua filha? É verdade que nasci...
Ouviste tudo?
Tudo! Eu estava ali, perto da porta, que estava entreaberta. Oh, pai! Foi terrível e eu creio que agora ainda é pior! Eu, que me sentia tão feliz por ser tua filha! E agora não sou nada... menos que nada! O mais pobre dos mendigos tem o direito de me desprezar, o...
Cala-te, Fiora! Por amor de Deus, cala-te! Enquanto não souberes tudo, não podes julgar. Quanto a mim, és minha filha porque te quis e reconheci... e porque te amo! Vem, vem comigo! Vamos para o studiolo! É diante da imagem da tua mãe que te quero dizer a verdade. É uma história triste e dolorosa, que Léonarde conhece bem, mas que eu preciso de te contar. Vem, minha filha!
Rodeando os ombros de Fiora com o braço, Francesco levou-a docemente pela galeria até à pequena sala íntima e acolhedora, na qual reinava o sorriso de Marie de Brévailles. Léonarde seguiu-os e mandou embora Khatoun, que esperava à porta com a ansiedade no rosto, porque havia lágrimas nos olhos de Fiora, e Fiora nunca chorava:
Espera por ela no quarto! Ela já lá vai ter. Eu sigo-te daqui a pouco.
Eu preferia que viésseis connosco, Léonarde disse Beltrami. Duas memórias valem mais do que uma quando procuramos não esquecer nada...