Então, juntos, entraram no studiolo. Francesco retirou o pano de veludo que cobria o retrato de Marie e foi sentar-se por trás da sua mesa, indicando uma cadeira a Léonarde. Fiora preferiu instalar-se numa almofada aos pés do pai.
Vais precisar de coragem, minha querida, porque eu vou-te contar uma história terrível, mas, ao mesmo tempo, uma história maravilhosa e enternecedora, da qual o ódio de Hieronyma apenas reteve os traços mais horríveis... Lembras-te daquele chapeuzinho de renda que te mostrei e que Sandro Botticelli reproduziu neste retrato? Tu reparaste numas manchas de sangue e eu não quis responder às tuas perguntas.
Disseste que me responderias mais tarde, quando eu fosse mulher. Eu agora já sou uma mulher.
Ainda não me habituei disse Francesco, acariciando-lhe os cabelos sedosos. Mas, nesse dia, menti-te. Não tinha intenção de te contar a verdade, fosse quando fosse, porque queria que ela desaparecesse comigo e com Léonarde. Entre os dois, essa verdade estava bem guardada. Foi preciso a traição de um homem que eu pensava ser fiel...
As gentes de Montughi e da região murmuram que essa Hieronyma tem o fogo no rabo grunhiu Léonarde. Nós falámos disso, Jeanette e eu, mas o marido mandou-nos calar com medo do sogro. Talvez fosse bom informá-lo sobre a conduta da nora?
Eu ameacei a minha prima, mas ela não teve medo. Ela sabe que, entre a sua má conduta e a perspectiva de pôr a mão nos meus bens, o velho pirata não hesitará... deixa o castigo para mais tarde. Uma coisa em que ela, de qualquer maneira, devia pensar. Mas, para nós, o mal está feito.
Pai pediu Fiora deixemos essa mulher onde está! Vós fizestes-me vir aqui para me contardes a história da minha mãe e tudo o que sei é que ela morreu tragicamente. Dizeis-me como?
No cadafalso, com o pescoço cortado ao mesmo tempo que o teu verdadeiro pai. Chamavam-se Marie e Jean de Brévailles...
Eu já ouvi falar nesse nome...
Por favor, Fiora, não me interrompas mais. Já é suficientemente penoso reviver essas horas, em que tudo mudou para mim.
Em sinal de arrependimento, Fiora beijou a mão do seu pai e depois guardou-a entre as suas, ao mesmo tempo que este, com os olhos postos no retrato, começava a sua história:
Durante as minhas noites sem sono, revejo muitas vezes os pormenores daquele dia de Dezembro, cinzento e frio, em que entrei na cidade de Dijon, que é a capital dos duques da Borgonha. Uma bela cidade, que eu conhecia bem e onde gostava de ficar...
Pouco a pouco, a voz do contador, a princípio um pouco sufocada, afirmou-se e recuperou a sua cor. Poeta como quase todos os florentinos, Francesco tinha o dom da palavra e o sentido da evocação. Diante dos olhos das duas mulheres que o escutavam traçou, com uma segurança espantosa, o quadro daquela praça coberta por uma multidão silenciosa, enquanto o sino tocava a finados. Com uma dor que lhe fazia vibrar a voz, evocou o casal de jovens condenados, tão belos, tão radiosos na miserável carroça do carrasco que pareciam «marchar para o seu triunfo», a silhueta aflita do velho padre, a do carrasco, sinistra, a emoção dos assistentes e a desordem da sua alma face à morte daquela jovem delicada. Falou de Regnault du Hamel, cujo nome encheu, ao passar, a sua boca de amargura com o seu ódio e crueldade impiedosa. Repetiu o relato de Antoine Charruet com uma emoção que lhe fez tremer a voz, ao evocar o calvário suportado por Marie na casa do seu marido e os esforços desesperados da sua mãe para obter uma graça que lhe foi, por duas vezes, impiedosamente recusada. Por fim, disse como salvara o bebé da morte, como decidira fazer dele sua filha e como Léonarde, espontaneamente, se oferecera para velar pela pequenita privada de mãe.
Quando ele acabou, Léonarde chorava, mas os olhos de Fiora brilhavam de cólera e indignação:
Toda aquela gente merecia mais a morte do que... os meus pobres pais! Esse du Hamel primeiro, que não passava de um miserável e depois esse pai, que não quis defender os seus filhos. Por fim esse duque Filipe e esse conde de Charolais, que não souberam ter piedade, que quiseram que a execução fosse pública e aquela fossa ignóbil, que vergonha!
O duque Filipe morreu, Fiora. Quanto ao conde de Charolais, é agora o duque Carlos, o Temerário, a quem messire de Selongey votou uma fidelidade absoluta...
A recordação do nome do seu marido trouxe Fiora de volta ao presente.
Philippe!... Foi ele que me falou de Jean de Brévailles! Conheceu-o, quando ele próprio era pajem do conde de Charolais e a sua parecença comigo admirou-o... Ele... também sabia?
Sabia... Foi exactamente por ele saber tudo que aceitei que casasses com ele.
Fiora levantou-se tão bruscamente que desequilibrou a mesa, de onde caíram alguns papéis:
Não me digas que ele empregou os mesmos meios que essa horrível Hieronyma para obter a minha mão, essa chantagem indigna?
Beltrami procurou com os olhos a ajuda de Léonarde. Depois de tudo o que acabava de contar a Fiora, poderia ainda vibrar-lhe aquela verdade? Era ainda muito nova para a suportar... Mas Léonarde, que secara os olhos, levantou-se também e colocou-se por trás da jovem, como se temesse vê-la desfalecer com o choque.
É preciso dizer-lhe toda a verdade, ser Francesco. Ela é de boa têmpera. São coisas que ela não deve descobrir por si própria. Seria ainda mais duro.
Tendes razão suspirou Beltrami. Vou-lhe contar tudo; é verdade, Fiora, messire de Selongey empregou esse meio. Ele queria-te a qualquer preço e disse-me que estava pronto a qualquer acção, fosse ela vil, para te conseguir. A parecença admirou-o, é verdade, mas, sobretudo, dá-se com os Brévailles e conseguiu descobrir, não sei como, o que se passou naquele dia infeliz. Sabia que a filha de Marie vivia em Florença com um rico mercador que fizera dela sua filha. Quando te viu, percebeu logo quem tu eras e só te falou no jovem escudeiro para ver o que sabias...
De tudo aquilo, Fiora só reteve uma coisa: Philippe era capaz, por ela, de ir até ao crime! Uma felicidade infinita apoderou-se dela.
Nesse caso, ele ama-me até esse ponto! Oh! Philippe! Outra qualquer reprovar-te-ia por teres empregado um tal meio, mas eu agradeço-te, porque me permitiu ser tua, tua mulher, até que a morte nos separe.
Beltrami, subitamente, não foi capaz de suportar aquele olhar extasiado, aquela paixão que vibrava na voz da sua filha. O ciúme levou-o mais longe do que queria.
Nunca mais o verás, Fiora! Nunca, como tu pensas, ele te virá buscar para te levar para o seu castelo e para a corte do seu senhor! Só queria de ti uma noite, uma só, para saciar o ardor que lhe inspiravas e tu terás de passar a tua vida aqui, junto de mim!
Tal como uma nuvem esconde o Sol, o rosto de Fiora perdeu toda a luz. A jovem vacilou sob o golpe. Pensando que ela ia cair, Léonarde quis segurá-la nos braços, mas Fiora repeliu-a docemente.
Ainda não sei tudo, pois não? O notário, a bênção no convento, tudo isso não passou de uma comédia, de uma astúcia.
Não. Tu és verdadeiramente a condessa de Selongey e nada pode mudar esse estado de coisas... salvo a morte! O teu marido não voltará, porque vai procurá-la sob as armas do duque da Borgonha.
Ele quer morrer? Mas, porquê?
Desta vez, Beltrami hesitou. O que tinha ainda para dizer era terrível... mas Fiora mantinha-o sob o seu olhar, de uma dureza mineral. A jovem repetiu, quase gritando:
Eu quero saber porquê!
Não ousando mais suportar aquele olhar terrível, Beltrami virou a cabeça para o retrato, como que pedindo socorro. A voz nítida de Léonarde chegou-lhe como num sonho:
É preciso ir até ao fim, ser Francesco! É preciso tirar o abcesso. A ferida sarará mais depressa.