Deixai que eu faço! Despacho-me mais depressa sem vós!
Mas se o meu pai não se juntar a nós em Livorno, que fazemos?
O capitão do Santa Maria del Fiore terá as suas ordens. Se ao fim de quarenta e oito horas messer Francesco não estiver ao pé de nós, deverá levantar ferro para nos levar para França. Será uma longa viagem, porque iremos por mar e por rio até Paris, onde nos alojaremos em casa do irmão-de-leite do vosso pai, Agnolo Nardi, que tem lá uma sucursal da casa do vosso pai. E depois, veremos... mas, por agora, despachemo-nos...
É inútil. Eu não quero deixar o meu pai. Ou partimos com ele, ou não partimos de todo.
Léonarde, que acabava de atar as correias de uma arca, endireitou-se e, de mãos nas ancas doridas, perguntou:
Vós amais o vosso pai?
Que pergunta! Naturalmente que sim!
Nesse caso, obedecei-lhe sem procurar armar em heroína! Se ele decidiu assim, é porque pensa que é a melhor coisa a fazer. Não achais que ele já se sente suficientemente infeliz com aquele demónio feminino que lhe pretende morder a carne? Pensais que ele não tem medo?
Eu não quero agravar-lhe as preocupações, mas não faríamos melhor se fugíssemos todos juntos? Podíamos ter partido ontem à noite...
Fugir é confessar que se tem culpa, ou, pelo menos, confessar que se tem medo. Talvez não cheguemos a partir para França. Depende de Médicis! Imaginai que, para evitar o escândalo, ele decide casar-vos com o vosso primo Piero? Se assim for, o vosso pai poderá dizer que vós fugistes e que ignora para onde. Mas se vos sentis tentada pelo vosso primo Piero...
Como ousais falar-me assim? Eu sou casada e vós sabei-lo bem.
Sobretudo, sei que um casamento, ainda por cima secreto, pode ser anulado. É tudo uma questão de dinheiro. E diz-se que o papa Sisto Iv gosta mais de dinheiro do que convém a um soberano pontífice. Compreendestes?
Sim. Acabemos isto e tentemos, depois, descansar um pouco. Vós estais muito pálida, Léonarde!
Se quereis saber a verdade, estou morta de fadiga. E ficarei contente por me deitar durante uma hora ou duas. Sobretudo se amanhã for preciso passar metade do dia a cavalo.
As malas estavam prontas. Só tinham deixado de fora as roupas para o dia seguinte. O que era necessário para a viagem ia na mala pequena. As outras foram arrastadas para uma arrecadação a seguir ao quarto de Fiora. Antes de se retirar, Léonarde segurou na jovem pelos ombros para a beijar, mas não a largou de imediato:
O que é que vos custou mais, Fiora? perguntou ela muito séria. A revelação da vossa origem... ou a conduta do vosso marido?
Não tem comparação. Eu amava a minha mãe sem a conhecer e creio que ainda a amo mais por tudo o que sofreu. Quanto a Philippe de Selongey... oh! só queria vê-lo morto!
No entanto, chorareis no dia em que souberdes que ele morreu. Acreditais em mim se vos disser que ele vos ama mais do que pensava, que foi apanhado na própria armadilha?
Eu sempre acreditei em vós... mas desta vez preciso de uma prova evidente! E, mesmo assim, não sei se lhe perdoarei... Ide dormir!
Léonarde dispunha-se a sair quando Fiora a deteve:
Um instante, por favor!
Com dedos que não tremiam, tirou o fio que trazia ao pescoço, sob a camisa, abriu-o, tirou o anel de ouro que Philippe lhe tinha dado e estendeu-o à velha solteirona:
Tomai! Fazei dele o que quiserdes! Já não o quero usar... Léonarde olhou-a no fundo dos olhos e leu neles, sem dúvida, uma vontade absoluta, porque pegou no anel sem dizer nada e saiu.
Depois de ficar só, Fiora voltou a deitar-se, mas não conseguiu conciliar o sono a despeito do cansaço. A angústia que se apoderara dela em San Miniato regressou depois de Léonarde sair, tão dolorosa, que Fiora precisou de lutar para não correr atrás da velha solteirona para lhe pedir que a deixasse dormir com ela, como quando era criança. O seu orgulho impediu-a. Aliás, para sua própria surpresa: seria possível que ainda tivesse uma onça de amor-próprio depois de tudo o que tinha ouvido naquela noite?
A jovem levantou-se, foi beber um pouco de água com mel, aproximou-se da janela para olhar para a noite que se estendia sobre a cidade, constelada como um manto real, escutou por um momento os sons familiares, os passos da milícia raspando o pavimento, o chapinhar de um remo no rio, o grito de uma gaivota, o sino de um convento tocando as matinas. O pensamento de que a partir do dia seguinte talvez nunca mais os ouvisse foi-lhe penoso: descobriu que estava amarrada àquelas coisas simples. A menos que Lourenço se mostrasse magnânimo e agisse como verdadeiro amigo, o que ela não deixava de duvidar, dormiria no dia seguinte num albergue qualquer e, no outro dia a bordo do Santa Maria delFiore, o navio que a trouxera de França com a sua ama-de-leite e Léonarde e que em breve a conduziria para um destino desconhecido que a assustava um pouco, mas apenas porque temia afrontálo sem o braço tranquilizador do seu pai. Se Francesco fosse ter com ela, tudo seria mais fácil...
Bruscamente, a recordação da profecia de Demétrios atravessou-lhe o espírito. O médico dissera que ela estaria longe de Florença e que não seria feliz quando a morte levasse Simonetta, o que, para ela, era de uma evidência cega. Ela ia partir, talvez para sempre e o seu pai não estaria com ela, porque deixara de ser feliz...
Não partirei! decidiu ela em voz alta Léonarde que diga o que quiser: ficarei com o meu pai. Aconteça o que acontecer! O desastre não pode ser maior do que já é...
Decidida, voltou para o leito onde Khatoun continuava a dormir sempre protegida pela sua bem-aventurada inocência, fechou os olhos... e caiu imediatamente no sono.
Quando acordou já era tarde e injuriou Khatoun por tê-la deixado dormir até meio da manhã:
Donna Léonarde é que mandou! queixou-se a pequena. Mas Fiora não a ouviu. Prometera a si própria, durante a noite, ter uma conversa com o seu pai antes de ele partir para o palácio Médícis e, esperando que ainda não fosse tarde, lançou-se para fora do quarto. Rinaldo, que ela encontrou na galeria carregado com vários trajes para limpar, disse-lhe que Francesco partira há mais de uma hora... Então, pôs-se à procura de Léonarde, mas esta estava na cozinha e Fiora estava proibida de lá ir, salvo quando na companhia da governanta quando esta lhe ensinava os deveres de uma boa dona de casa e os segredos de administração de uma grande casa. Por outro lado, não tivera tempo de enfiar sobre a camisa outra coisa senão um ligeiro vestido interior e estava descalça.
Pensando que não podia fazer mais nada, regressou ao quarto para se arranjar. Uma vez vestida teria mais dignidade para fazer valer a sua decisão, que era esperar, acontecesse o que acontecesse, o regresso de Beltrami... Lamentava não ter podido falar-lhe antes de sair, mas Fiora decidida a não partir sem ver primeiro o seu pai, pensou que ainda não era tarde...
Compreendeu que se enganara e que já era muito tarde quando alguns minutos mais tarde, um bando aos berros e gesticulando trouxe o corpo de Francesco Beltrami para o palácio. Quando trocava algumas palavras com um cliente na confusão do Mercado Novo, uma mão desconhecida espetou-lhe um punhal nas costas.
CAPÍTULO VI
REQUIEM POR UM HOMEM DE BEM
Os homens que transportavam o corpo de Francesco Beltrami depositaram-no sobre o seu leito, ao mesmo tempo que os criados faziam recuar, com grande dificuldade, a multidão volúvel e excitada que lhe servira de escolta. O palácio ressoava com lamentação barulhenta e ameaças de morte, aliás sinceras, porque o rico negociante era respeitado pela sua riqueza e amado pela sua caridade. Léonarde, que nunca perdia o sangue-frio, agradeceu do alto da escadaria, fez apelo às orações de toda aquela boa gente e, finalmente, ordenou que lhes servissem bom vinho, para os reconfortar na profunda dor de que davam demonstração. Mandou também distribuir algumas moedas pelos mendigos que ali se encontravam e todos se retiraram louvando a generosidade das damas da casa Beltrami, lamentando a perda cruel que as atingira.