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Após o que a governanta regressou rapidamente para junto de Fiora que, ajoelhada junto do leito, soluçava perdidamente, o rosto enfiado na colcha de veludo sobre a qual repousava o seu pai. Mas a jovem não era a única dentro do quarto e, ao penetrar nele, Léonarde viu que estava lá um homem, alto e magro, metido num grande traje de veludo negro, de mangas pendentes e cujo colarinho alto estava fechado por um alfinete de ouro. Um barrete a condizer cobria-lhe os cabelos grisalhos, que se juntavam a uma barba curta. Com os braços cruzados no peito, olhava para Fiora sem dizer nada, respeitando a sua dor, mas, ao ouvir o barulho que Léonarde fez ao entrar, virou-se para ela.

Fiquei porque tenho coisas a dizer disse ele respondendo em francês à muda interrogação da velha solteirona, o que não deixou de a surpreender. Assisti ao crime...

E não detivestes o criminoso? Era, parece-me, a primeira coisa a fazer?

Não. A primeira coisa a fazer era assegurar-me de que messer Beltrami já estava para lá de qualquer socorro humano. Eu sou médico e esta jovem conhece-me acrescentou Demétrios, apontando com o queixo para Fiora. O assassino devia seguir a sua vítima. Aproveitou-se de uma violenta disputa entre dois mercadores de galinhas e duas peixeiras, que degenerou em pancadaria e criou um ajuntamento. Não o vi dar a facada, mas vi subitamente um punhal no dorso do vosso patrão, que, aliás, nem sequer gritou. Quanto ao assassino, desapareceu na multidão, talvez por entre as pernas das pessoas e as bancas, algumas das quais estavam de pernas para o ar. Mas hei-de encontrá-lo... graças a isto!

Da sua manga o grego tirou uma lâmina grande, de ponta afiada, uma faca com um punho de corno polido, sem qualquer marca distintiva, para a qual Léonarde olhou com desgosto.

Tirei esta arma do ferimento e peço-vos autorização para a guardar. Não penso que a sua contemplação seja agradável a donna Fiora...

Eu também não, mas, por que quereis guardá-la? O magistrado municipal há-de aparecer aqui. Não é a ele que a deveis entregar?

Ele não saberia o que fazer dela, ao passo que eu sou capaz de a fazer falar. A arma de um assassino pode ser mais faladora do que imaginais.

Nesse caso, ficai com ela! Se conseguirdes fazer com que apanhem o miserável, todos aqui vos abençoarão...

Sem responder, o médico envolveu de novo a faca no seu lenço e meteu-a na manga. Em seguida, aproximou-se de Fiora, demasiado mergulhada na sua dor para se ter apercebido da sua presença. Inclinou-se e pousou-lhe no ombro uma mão firme, sob a pressão da qual a jovem se endireitou. Esta virou para ele um rosto devastado pelas lágrimas e uns olhos que não viam nada:

Que me queres?... Não posso chorar em paz?

Preciso de te falar disse Demétrios, empregando o toscano visto que ela tinha falado nessa língua. Recorda-te! Eu disse-te que, se precisasses de ajuda, poderias chamar-me...

Recordo-me. O médico grego! Dizem que és sábio, mas não podes ressuscitar o meu pai e nada mais me interessa.

Eu não sou Deus, com efeito, mas tenho mais poderes do que pensas. E venho dizer-te que não tens tempo para lágrimas. Tens de fugir e o mais depressa possível, porque és ameaçada por um grande perigo, perigo esse que vem de uma mulher...

Fiora levantou-se para lhe fazer face:

Se sabes isso, deves poder impedir essa mulher de me fazer mal! Ela acaba de o fazer, aliás! Tenho a certeza que foi ela que contratou o assassino...

Eu não posso impedir o que já está em marcha. Por outro lado, sou estrangeiro nesta cidade, da qual conheço, no entanto, a versatilidade. Amanhã poderás ter tantos inimigos como hoje tens amigos. Portanto, afasta-te! Nem que seja para dares a ti própria tempo para reflectir.

Nós devíamos partir ao meio-dia disse Léonarde.

Eu estava decidida a não partir sem o meu pai disse Fiora enxugando os olhos e o rosto com um gesto maquinal. Perdoai-me por ter mudado de opinião, querida Léonarde, mas procurei-vos há bocado para vo-lo dizer e depois... aconteceu isto e já não posso partir. Tu dizes que esta cidade pode virar-se contra mim? Talvez o faça, mas, se eu partir, abandonando a estranhos o corpo do meu pai, fá-lo de certeza. Eu quero prestar-lhe os últimos deveres de uma filha que o amava muito... e quero vingá-lo!

Se te acontecer uma desgraça, como poderás vingá-lo? Foge!

Não. Quero ficar. Mais tarde, quando o meu pai puder descansar em paz, partirei, sem dúvida... porque esta justiça que quero prestar não é a única que me é exigida.

A entrada do velho Rinaldo interrompeu-a. Ele vinha anunciar a chegada do magistrado municipal, que, um instante mais tarde, entrou no quarto.

Cesare Petrucchi era um homem de 60 anos, pequeno e robusto, que vestia com a devida majestade o manto vermelho da sua função. Vindo de uma antiga família originária de Siena, conseguira, graças a uma vontade tenaz e a uma ausência total de indulgência, elevar-se até à Senhoria, onde se dizia que reinava pelo medo sobre os outros «senhores». Tinha-os firmemente na mão desde um certo Conselho em que, não conseguindo obter um voto que decidiria um assunto espinhoso, mandara trazer as chaves da sala e sentara-se em cima delas, declarando que dali só sairiam depois de votarem convenientemente. Tudo o que consentiu em fazer foi alimentar os seus colegas, até que eles acabaram com todas as hesitações...

Fiora sabia que ele não gostava do seu pai, ao qual censurava uma fortuna demasiado grande sem ousar formular acusações precisas, mas a quem adoraria apanhar em falta, fosse no que fosse. Também sabia que não poderia esperar dele compaixão nem verdadeira ajuda de qualquer espécie e que, pelo seu lado, Francesco Beltrami desprezava um pouco, ou, pelo menos, desconfiava do magistrado municipal de justiça.

Quando ele entrou, precedido por uns guardas em casacas verdes

as cores da Senhoria Fiora saudou-o como convinha e esperou que ele falasse. Por seu lado, Petrucci começou por se inclinar diante do corpo e depois aproximou-se da cabeceira para o olhar mais de perto.

Apanharam o assassino? perguntou ele em tom importante.

Não, magnífico senhor respondeu Fiora. E os desta casa põem doravante todas as suas esperanças na justiça de Florença, da qual tu és a encarnação!

Podes estar certa de que faremos essa justiça que reclamas. O teu venerado pai, que Deus tenha na Sua Santa Guarda tinha inimigos?

Qual é o homem rico que não os tem? No entanto, não imaginávamos que houvesse alguém suficientemente cobarde para esfaquear de morte e por trás um homem que se esforçou pelo bem durante toda a sua vida. Um homem...

A sua voz extinguiu-se. Aquela comédia protocolar a que a obrigavam era-lhe insuportável, mas era impossível dispensá-la, já que o «magnífico senhor» era daqueles que, vindos do comércio, mais agarrados eram às formas exteriores devidas à sua função. Felizmente, Petrucci, pouco condoído com a sua dor, virou-se para Demétrios Lascaris, que, impassível e de mãos metidas nas mangas, o media do alto da sua estatura:

Que fazes tu aqui? perguntou azedamente o magistrado. Pertences a esta família? És um amigo chegado?

Nem uma coisa, nem outra e tu sabe-lo bem, magnífico senhor

respondeu o médico, cuja voz profunda deixou passar uma nota sarcástica. Vim trazido pela multidão indignada, da qual tu podes ainda, daqui, ouvir os clamores. (Com efeito, ouvia-se barulho no exterior, provando que a multidão continuava em frente do palácio Beltrami.)