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Acontece que eu estava no Mercato Nuovo quando messerBeltrami foi ferido e quis prestar-lhe os meus cuidados infelizmente inúteis, porque ele morreu do golpe. Enfim...

Talvez seja bom ouvirmos-te! cortou Petrucchi. Tu és uma testemunha preciosa...

-- Que não te poderá dizer mais do que todos aqueles que estavam presentes. Enfim, dizia eu, pensei que monsenhor Lourenço ficaria feliz por um dos seus amigos se encontrar no local para dar um pouco de conforto àquela que acaba de ficar órfã por causa de um crime e cuja dor merece o maior respeito. Nesta hora, donna Fiora precisa de amigos, mais do que de magistrados.

Petrucchi ficou tão vermelho como o seu traje ao ouvir aquele reparo às conveniências e ao poder dos Médicis. Resmungou umas vagas palavras de condolências e retirou-se com grande dignidade. Os seus passos, que se queriam com a solenidade da lei, ressoaram na galeria e depois extinguiram-se. Então Fiora, que queria ficar só, virou-se para Lascaris:

Obrigada! disse ela com sinceridade. Não sei por que te interessas tanto por mim, mas estou-te reconhecida... assim como pelo que disseste àquela personagem vaidosa.

Continuas a não querer seguir o meu conselho?

Não posso, nem quero. Estou nas mãos de Deus...

Há muito tempo que sei que não se pode ir contra o destino e que é mais difícil ainda impedir que um homem siga o caminho que escolheu. Quanto às mulheres... Lembra-te, no entanto, do que te disse: chama-me quando não souberes para que lado te hás-de virar...

O médico saudou-a e desapareceu como uma sombra, deixando Fiora desorientada. Na verdade, a jovem não sabia o que pensar. Aquele homem parecia possuir o dom de ler o futuro, mas sem lhe distinguir os pormenores. Por outro lado, a jovem não conseguia compreender o que pretendia ele ao aproximar-se tanto dela, uma jovem florentina como tantas outras. Enfim, não conseguia confiar naquela personagem bizarra, nem, aliás, sentir por ele uma verdadeira simpatia. Havia em Demétrios qualquer coisa que a atraía e afastava ao mesmo tempo. Mas o quê?

Léonarde, que saíra para dar algumas ordens, regressou e encontrou-a só, contemplando dolorosamente a longa forma imóvel, tão pálida sobre a cor púrpura do leito, aquela aparência que fora, duas horas antes, um homem cheio de inteligência e vida, um homem que queria lutar pela felicidade daquela que elegera como filha... A governanta segurou-lhe gentilmente no braço.

Vinde, minha filha, tendes de me deixar tratar, juntamente com as outras criadas, da toilette do vosso pai. Vós mesma deveis preparar-vos, porque a jornada será longa e penosa, tal como a de amanhã e a de depois de amanhã. No vosso quarto, onde vos espera Khatoun, dispus tudo aquilo de que precisais... Mas, antes, repousai um pouco! Ides precisar de forças.

Uma hora mais tarde, Fiora, vestida até ao queixo de negro baço e com um véu sobre os cabelos severamente entrançados, esperava junto do seu pai, no quarto que haviam decorado de negro, a visita do senhor de Florença. Segundo o costume da República, que queria todos os cidadãos iguais na morte, o corpo de Francesco Beltrami fora vestido com um simples tecido branco forrado de tafetá e um gorro sem qualquer ornamento na cabeça. Nem jóias, nem qualquer sinal de riqueza. Por baixo tinham-lhe posto a enxerga obrigatória, mas essa enxerga estava sobre o grande leito cor de púrpura, que, na decoração fúnebre, gritava como uma enorme mancha de sangue, na qual a brancura do defunto figurava como reflexo. Dois círios apenas, mas muito grossos, ardiam de cada lado do leito transformado em catafalco. Arderiam assim até à hora do funeral, no qual o corpo, unicamente coberto por um pano branco, seria levado à sua sepultura. Única derrogação da lei, que fazia do cemitério comunal o único local do último repouso, Beltrami, o mais poderoso dos da arte de Calimala, seria enterrado na igreja de Orsanmichele, que era a da corporação.

Fiora já não chorava. O fogo que ardia nela tinha-lhe secado as lágrimas e não permitia que elas corressem. Quando o Magnífico entrou, acompanhado dos seus amigos Poliziano e Ridolfi, a jovem atirou-se-lhe aos pés:

Justiça, senhor Lourenço! Justiça para o meu pai assassinado dentro da tua cidade! Eu, sua filha, não terei descanso até que o seu assassino caia nas tuas mãos soberanas!

Curvando a sua alta estatura, o Magnífico segurou nas mãos suplicantes que se estendiam para ele.

Eu, Lourenço, não terei descanso enquanto o assassino não balançar, pendurado pelos pés, na varanda da Senhoria! Levanta-te, Fiora!

O teu pai era um dos melhores da nossa cidade e era meu amigo. Prometo-te vingança...

Segurando sempre Fiora pela mão, o Magnífico avançou para o corpo, que contemplou por um instante. A chama dos círios cinzelava o perfil nítido de Francesco, que, na morte, parecia ter reencontrado a juventude.

Quem quer ser feliz, apressa-se murmurou ele porque ninguém sabe o dia de amanhã! Francesco possuía tudo o que pode fazer um homem feliz e, no entanto, uma mão suficientemente criminosa e cobarde matou pelas costas aquele que nunca tinha feito mal a ninguém. Quem será o dono dessa mão?

Acabas de o dizer, senhor: um cobarde que, sem dúvida, não agiu por conta própria.

Que significa isso?

Que se pode armar alguém quando não temos coragem para o fazermos nós próprios. Os rufias não faltam, dizem, nos bairros de má fama e tudo se compra, mesmo a vida humana. Tudo depende do preço que se pretende pagar...

Lourenço olhou para Fiora com uma atenção que o fez semicerrar os olhos míopes:

Estás a pensar em alguém? Sabes que uma acusação sem provas é uma coisa que pode ser punida por lei?

Não acusarei ninguém enquanto não tiver provas. Mas então...

Então, será a mim que dirá respeito disse Lourenço severamente. Depois, mais docemente: Agora, estás só, Fiora e és muito jovem para tanta solidão. O teu pai não desejava casar-te ainda, mas agora precisas de um companheiro. Não só porque herdas uma grande fortuna, mas também devido a negócios complexos. A afinação dos tecidos não chegava a Francesco. A eles juntou um banco, navios, dos quais dois estão fundeados em Veneza, sem contar com o Santa Maria del Fiore, o seu barco pessoal, que está atracado naquele pequeno porto de Livorno, do qual ele desejava, eu sei, fazer um grande porto mercante, uma mina de alúmen em Volteira e também casas em Paris, Londres, Bruges... e talvez outras coisas, que eu ignoro. Precisas de um homem à cabeça disso tudo... e eu sei que o meu jovem primo Luca Tornabuoni está profundamente apaixonado por ti. Pensarás nisso... mais tarde, quando a tua dor for menos viva?

Mais tarde... talvez. Por agora não quero casar-me.

A jovem ficou surpreendida com a firmeza com que aquela mentira acabava de passar pela sua boca. Nem sequer tinha corado ao dar esperança ao Magnífico naquele casamento impossível com o seu primo, mas, por outro lado, sentia-se um pouco chocada com a pressa posta por Lourenço na candidatura de Luca. O desgosto, para ele, era uma coisa e os negócios outra e desejava, evidentemente, ver o pequeno reino de Beltrami unir-se aos bens, já imensos, da sua família.

Depois de se ter inclinado de novo perante os despojos mortais do seu amigo, Lourenço saudou Fiora e dirigiu-se para a porta, mas, subitamente, virou-se:

Terás tu alguma razão para temeres pela tua própria vida, tu que és a única filha de Francesco? Até esta manhã não tinha respondeu a jovem. Mas, agora, já não sei.

Todas as precauções são boas. Vou mandar-te Savaglio com alguns guardas.

Agradeço-te, mas valerá a pena? Não podes manter esta casa guardada indefinidamente. E eu estou rodeada de criados fiéis. Pelo menos, acho que sim...