Выбрать главу

Falas do que ignoras! Nós, os Florentinos, gostamos de dar livre curso, tanto às nossas alegrias, como às nossas dores. Mas, para compreender, é preciso ser do nosso sangue...

Hieronyma foi ajoelhar-se à cabeceira do leito, escondendo assim a cabeça do defunto a Botticelli. Com um suspiro, o pintor parou. Teve de esperar um grande quarto de hora. A oração de Hieronyma, entrecortada de invocações à alma de Francesco, prolongou-se, irritante até mais não para Fiora, que, de pé do outro lado do leito, observava a prima. Finalmente, esta inclinou-se, pousou um beijo na fronte fria e declamou num tom melodramático:

Repousa em paz, Francesco! Eu fico com o testemunho! Doravante eu é que velarei por tudo o que te era querido, juro-to!

A megera levantou-se penosamente, envolta como estava nos seus véus fúnebres. O olhar gelado de Fiora seguia cada um dos seus movimentos:

Juramento inútil, prima! Ninguém, aqui, te pediu nada e o meu pai menos do que ninguém! Eu sou a mais velha da família. Doravante, sou eu o chefe e estou pronta a prová-lo. No entanto, consinto em dar-te a escolher o futuro. Preferes vir morar sob o meu tecto, ou que venhamos, eu e os meus, instalar-nos aqui?

A impudência de Hieronyma quase cortou a respiração de Fiora, mas o ódio e a cupidez que ela via luzir nos olhos sombrios da mulher galvanizaram-na.

Nem uma coisa, nem outra! Como ousas dispor assim do que não te pertence e, além disso, da minha pessoa?

O que ainda não me pertence não tardará a pertencer. Quanto a ti, é tempo de esqueceres esses ares de princesa. Em breve não passarás da esposa submissa do meu filho Piero... como decidimos, o meu primo e eu!

Como ousas, enquanto ele continua presente e nos ouve, proferir tais mentiras? Pensas que ignoro o que foi dito, ontem, na sala do Órgão? O meu pai repudiou com desdém um casamento que o ofendia...

... mas que não podia evitar. E ele era demasiado inteligente para não o compreender. A partir do fim do luto, procederemos aos esponsais.

Nunca! Nunca poderás forçar-me! Apelarei a monsenhor Lourenço! Subitamente, Hieronyma desatou a rir:

O teu senhor não poderá fazer nada. Nós ainda estamos numa república, apesar dos grandes ares dele. Terá de ceder à vontade do povo! Verás, verás... E desatou a rir a bandeiras despregadas.

Então, largando o papel e o lápis, Botticelli, pálido de cólera, lançou-se a ela para a pôr na rua.

És louca? rugiu o pintor. Ousar rir, ousar ameaçar na câmara de um morto? Isso não traz nada de bom, donna Hieronyma, e tu devias temer a cólera de Deus!

Deixa-me, maldito pinta-monos! Fica-te bem invocar a ira do céu, tu que vives, tal como os teus iguais, no vício e na luxúria!

É sem dúvida, por essa razão que as igrejas e os conventos não cessam de nos fazer encomendas. Retira-te sem fazer barulho, donna Hieronyma! Não tens aqui ninguém a quem convencer e perturbas a paz de um morto!

Com um gesto furioso, Hieronyma arrancou o braço da mão do pintor, pôs ordem na sua toilette depois de lançar a tudo o que a rodeava um olhar de ameaça, transpôs a porta que Léonarde mantinha aberta para ela:

Em breve rirei mais e mais alto do que hoje e aqui mesmo, sem que ninguém me possa impedir! Voltarás a ver-me, Fiora! E não demorará muito!

É a segunda vez que ela te ameaça observou Chiara, que tinha seguido a cena sem dizer nada. Onde arranjou ela o direito?

Fiora não respondeu de imediato, hesitando ainda em confiar a uma estranha o drama que manchara o seu nascimento e perscrutando o rosto amável para tentar adivinhar a sua qualidade. Chiara seria suficientemente sua amiga para ir mais além, ou afastar-se-ia com repugnância? E, subitamente, tomou a decisão. Valia a pena tentar e se a filha dos nobres Albizzi não o suportasse, Fiora só ficaria mais só face ao desastre cada vez maior em que a sua vida parecia mergulhar a cada dia que passava:

Vem! disse ela. Já vais saber...

Acendendo uma vela na chama de um dos dois círios, a jovem pegou na chave do studiolo que estava dentro do pequeno cofre onde o seu pai costumava guardá-la e depois de um último olhar para o invólucro que abrigara uma alma tão forte e generosa, Fiora guiou a sua amiga pela galeria mal iluminada pelos archotes que, no pátio, ardiam dentro de garras de ferro.

A porta abriu-se sem um rangido, descobrindo o esplendor dos embutidos preciosos. Fiora fez entrar Chiara, fechou-a cuidadosamente e foi direita ao retrato. Com uma mão, tirou o veludo protector, ao mesmo tempo que, com a outra, iluminava o rosto louro que, subitamente, pareceu ganhar vida...

Mas disse Chiara és tu!... e, no entanto, não és verdadeiramente tu... Talvez seja dos cabelos louros...

Fui eu que posei, aliás sem desconfiar, mas este retrato é da minha mãe, Marie de Brévailles.

Pensava que nem sequer sabias o seu nome?

É verdade. Só o soube há pouco tempo. E agora vou, se tu quiseres, contar-te a sua história. Foi por isso que te trouxe aqui... Queres?

À guisa de resposta, Chiara instalou-se numa das cadeiras, cruzou os braços e esperou, enquanto Fiora acendia uma após outra as lâmpadas do grande candelabro.

Por que tanta luz? perguntou Chiara.

Porque vou abrir perante ti um abismo sangrento. As sombras serão menos densas, até para mim. Imagina que foi apenas ontem que o meu pai me contou tudo! Ontem... e agora parece-me que sempre o soube...

Queres mesmo falar? Podes calar-te, se preferires!

Não. Vou contar-te tudo, mas não me vou sentar ao pé de ti. Vou ficar aqui, perto desta janela, para que tu não me vejas. Depois... quando eu acabar, poderás deixar esta sala e esta casa sem sequer olhares para trás, se assim o desejares!

Mas...

Não digas nada! Como não sabes, ignoras o que pensarás quando eu acabar e eu quero que sejas livre de decidir. Acrescento apenas que, se partires, não quero que voltes!

Lentamente, Fiora afastou-se da zona luminosa. O seu vestido preto fundiu-se com as sombras da sala. Impressionada, Chiara apertou as mãos uma contra a outra e fechou os olhos, esperando o que se ia seguir com uma angústia da qual não se podia defender. A voz quente e calma de Fiora chegou-lhe como se viesse do fundo dos tempos.

Todos aqui acreditam que eu nasci secretamente em lençóis de fino linho num castelo francês. Nada de mais falso! Eu abri os olhos em Dijon, na palha da prisão onde a minha mãe aguardava a morte... e não sou filha de Francesco Beltrami.

Ignorando o oh» estupefacto da sua amiga, Fiora, com uma espantosa segurança de memória, refez para ela o relato do seu pai sem omitir o menor pormenor; mas, ao passar por aquela voz jovem, umas vezes surda, outras vibrante, o romance trágico de Jean e Marie de Brévailles encheu-se de cores de rara intensidade. Com os olhos fixos no retrato, Chiara mal ousava respirar, suspensa como estava daquela voz na sombra, que fazia renascer para ela as chamas de uma paixão irresistível, inflamada pela atmosfera triste de um quotidiano sórdido, a fuga para uma vida em comum impossível, o cerco, enfim a sentença de morte, a execução e os seus pormenores ignóbeis, contra os quais se erguera o amor súbito e total, absoluto, de um viajante. A jovem florentina pensava que estava a ouvir uma daquelas histórias fantásticas que os contadores de fábulas contavam nos mercados, mas aquela tinha as ressonâncias inimitáveis da verdade. E o encanto subsistia ainda um momento depois de a voz de Fiora se apagar. Seguiu-se um silêncio, profundo, que em breve se tornou insuportável à contadora. A espera de um veredicto que lhe metia medo, apertou-lhe a garganta. Entretanto, Chiara continuava a não reagir. A sua expressão estava hirta e os seus olhos arregalados contemplavam o vazio. Não dizia nada.