Subitamente, a jovem levantou-se com um movimento brusco e o coração de Fiora parou... Mas, em vez de se dirigir para a porta, Chiara foi direita à amiga:
Por que pensaste que eu te ia virar as costas?
Teria todo o sentido, parece-me?
Para mim, não. Primeiro, responde a uma pergunta: que sentes quando pensas nos teus pais? Vergonha?
Não... oh não! Uma grande piedade, na qual há muita ternura. Eu tenho quase a idade da minha mãe quando ela morreu e mal imagino que possa ser sua filha. Os meus pais, sinto-os muito próximos de mim, como um irmão e uma irmã. Quanto aos que os levaram ao cadafalso, não consigo evocá-los sem cólera: aquele marido abominável, aquele pai que não apenas entregou a sua filha a um tal homem, mas que não ousou lutar contra uma morte pública, que, entretanto, o desonrava. E depois aqueles príncipes sem piedade, aquele duque Carlos, sobretudo, que Jean de Brévailles tinha servido com tanta lealdade, que amava como...
A jovem mordeu os lábios. Ia dizer «como Philippe o ama...», mas não queria falar daquele homem a quem estava ligada por um casamento mentiroso e continuou muito depressa:
Quanto a esses só tenho ódio e desejo de vingança...
De vingança? Como poderás vingar-te? Se o duque Philippe já morreu e tu ignoras se o senhor du Hamel e o teu avô ainda estão vivos?
Não o chames assim! Ele não tem qualquer direito. Enquanto eu viver, Francesco Beltrami será sempre o meu pai, o único que conheci e a quem amo. Mas creio que um dia, talvez em breve, irei à Borgonha para acertar as minhas contas. E se Deus ainda não dispôs das suas vidas, eu porei ordem nelas. Aliás, resta um culpado: o duque Carlos!
És louca? Queres haver-te com um príncipe que, dizem, é mais poderoso do que todos os outros? Queres morrer como a tua mãe?
De qualquer maneira, ainda não chegámos lá. Primeiro, tenho de me vingar do miserável... ou da miserável que mandou matar o meu pai. É o sangue dele que grita mais forte! Os outros virão depois.
Chiara estremeceu, como se o frio da morte tivesse entrado subitamente na sala elegante e efeminada: «.
O teu desgosto perturba-te, Fiora! Deixa a justiça para aqueles que a têm a cargo! Lourenço de Médicis não pretende deixar impune o assassino de messer Beltrami e tu podes ter confiança nele. Quanto a essa infeliz história que dormia no coração do teu pai há 17 anos, farias bem se pensasses nela o menos possível e eu estou certa de que, se ele ainda fosse vivo...
Mas, pensa bem no que estás a dizer! Já te esqueceste de Hieronyma? Achas que, possuindo esta arma contra mim, ela não se vai servir dela? Eu acabo de recusar, tal como o meu pai, um casamento com o filho dela... e tu ouviste.
É verdade. Tinha-me esquecido. Nesse caso, só tens uma solução, a que o teu pai queria tentar: dizer tudo a Lourenço! Ou muito me engano, ou ele ajuda-te!
Fiora foi buscar a cobertura de veludo e, com gestos muito doces, cobriu o retrato com ela...
Vou seguir o teu conselho. Na noite do funeral vou-lhe pedir que me oiça...
Toda a Florença estava na rua dois dias depois, quando Francesco Beltrami deixou a sua casa para a sua última viagem, sobre uma padiola transportada por seis homens, os mais poderosos da arte de Calimala e coberto com um pano branco. O cortejo fúnebre, como o exigia a lei, era modesto: quatro monges transportando círios precediam o corpo, seguido por uma vintena de carpideiras conscienciosas nos seus vestidos negros mal cosidos. Por fim, Fiora, uma longa silhueta enquadrada por Léonarde e Chiara, seguia à cabeça dos seus criados e de todos aqueles que, nas suas diversas casas, tinham trabalhado para o grande negociante. Não havia música nem cânticos, mas, caindo do céu cinzento, por onde corriam as nuvens e as andorinhas, ouvia-se o toque a finados de todos os sinos de Florença. Assim o tinha decidido o Magnífico...
Lourenço também ordenara, para que todos pudessem assistir, que a cerimónia religiosa tivesse lugar no Duomo, antes de o defunto ser levado para a igreja de Orsanmichele, onde seria inumado.
Durante o caminho, a multidão que assistia era heteróclita, mas em redor do fabuloso Baptistério e nos acessos à catedral polícrona, todos aqueles que eram alguém na cidade estavam ali reunidos: as Artes maiores: Calimala, a Lã, a Seda, a Banca, os Juristas, os Boticários e os Peleiros, cada um com o seu estandarte particular e depois as Artes menores: talhantes, ferreiros, sapateiros, carpinteiros, taberneiros, estalajadeiros, curtidores, mercadores de azeite, sal e queijos, armeiros e, por fim, padeiros, que formavam a corporação menos apreciada da cidade, porque mais acessível... Toda a Senhoria ocupava a varanda do Bigallo, em frente da porta sul do Baptistério. Por fim, à entrada do Duomo, Lourenço e Giuliano de Médicis, vestidos de veludo negro e rodeados pela sua família e amigos. Todos os poetas, filósofos e pintores estavam presentes! Sandro Botticelli estava presente, assim como Verrocchio com os seus alunos: Perugino, Leonardo da Vinci e também os aprendizes, que moíam as tintas, limpavam os pincéis e velavam pelo abastecimento da equipa. Também lá estava... mas era impossível dar um nome a todos os rostos.
O esplendor vinha todo da igreja. Em frente das portas abertas da catedral, ao fundo da qual ardia uma floresta de círios, as capas douradas, os vestidos púrpura, as mitras cintilantes do bispo e dos abades de vários mosteiros compunham um fresco fabuloso, evocando a magnificência inaudita do paraíso para o qual ia a alma de Francesco Beltrami.
O som dos sinos caía do alto do campanário esguio, cujas ricas cores o tempo cinzento do dia não conseguia apagar, ao mesmo tempo que no interior da igreja se elevavam as vozes profundas dos órgãos, às quais se juntariam as de uma trintena de meninos de coro quando o defunto penetrasse no santuário.
Os carregadores já avançavam para seguirem o clérigo que começava a entrar, quando, subitamente, uma mulher envolta em véus negros se postou diante deles de braços abertos:
Para trás! O homem que transportais para este santo local morreu em estado de pecado! Não entrará aqui enquanto a verdade não for conhecida de todos!
Hieronyma! gemeu Fiora. Meu Deus, que vai ela fazer?
Até tenho medo de pensar murmurou Léonarde. Era todo o caso, não lhe falta audácia! Como messer Francesco morreu sem confissão, ela veio aqui denunciá-lo!
Tenho a certeza! Infelizmente, não podemos provar o contrário e ela sabe-o...
Entretanto, formava-se na multidão uma ondulação, de onde se elevava um burburinho que era impossível dizer se era de cólera ou de espanto. O capitão Savaglio, que seguira até ali, ladeando a multidão, a marcha de Fiora, avançou para repelir a perturbadora, que se debatia vigorosamente ao mesmo tempo que berrava:
Não me farão calar! É preciso que se faça justiça e que cesse o escândalo!
Está calada, mulher e sai daqui! bradou Savaglio. A tua conduta é que é escandalosa e sacrílega! Se alguém tem direito a clamar por justiça é o morto, que assassinaram vilmente...
Já pedia ele socorro aos seus homens com um gesto quando o magistrado municipal se aproximou:
Deixa essa mulher! A lei e a honra da nossa cidade dizem que qualquer cidadão pode exprimir-se livremente.
Livremente, sim, mas não em qualquer ocasião!
Essa também é a minha opinião disse a voz rouca de Lourenço de Médicis, que interveio por sua vez. Nós estamos aqui para dizer o último adeus a um dos nossos, um dos melhores e isto é indecente! Retira-te, Hieronyma Pazzi. Se tens uma queixa a fazer, serás ouvida mais tarde! Não se faz esperar um morto diante da casa de Deus!
Mas Hieronyma sabia que entre aquela gente havia quem tivesse ciúmes e detestasse Francesco Beltrami e que, ao falar de um escândalo, despeitava muitas curiosidades maldosas. Com toda a força da sua voz, gritou: