Então, que fazemos? impacientou-se Petrucci.
Fiora virou-se para ele depois de ter chamado Léonarde para o pé de si.
Deixemo-nos conduzir à Senhoria... magnífico senhor! Esperarei lá a decisão dos nobres priores. Mas não te esqueças de exigir que essa mulher apresente a sua testemunha!
A testemunha em questão não estava, naturalmente, longe. Saiu da multidão de olhos no chão e aproximou-se daquela que diziam sua amante. Fiora perguntou-lhe, sarcástica:
Não receias que a sombra do meu pai te venha atormentar as noites, fiel Marino? No teu lugar, tinha cuidado...
O homem não respondeu e pareceu curvar-se sobre si mesmo. Mas já os guardas da Senhoria os rodeavam, a ele e a Hieronyma, assim como também rodearam Fiora e Léonarde. O clérigo, desorientado pelo que acabava de acontecer, reapareceu sob o pórtico para retomar a cabeça do cortejo. Os carregadores, visivelmente cansados, recomeçaram a marcha e Fiora, imóvel de braço dado com Léonarde entre quatro soldados, viu desaparecer sob o mármore do portal a silhueta branca do seu pai, que era forçada a deixar ir assim, despojada do único amor real que ela lhe inspirava.
O sargento que comandava os soldados esperou que a igreja se enchesse, mas esta não podia conter aquela enorme multidão e tiveram que deixar as portas abertas. Não sem pena, Fiora conseguiu que Chiara se afastasse. Indignada com o que acabava de ver e ouvir, a jovem recusava-se ferozmente a abandonar a sua amiga. Pretendia que a conduzissem também a ela à Senhoria como testemunha e talvez Fiora não tivesse conseguido impedi-la, se o seu tio Giorgio Albizzi não a tivesse segurado pelo braço:
Vem! ordenou ele secamente. O teu lugar não é aqui.
A despeito da sua coragem, Fiora sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos face àquela fria manifestação de desprezo. Albizzi fora amigo de Francesco e no entanto, à primeira acusação, afastava-se, retirando a Fiora um dos seus mais fiéis apoios. Por entre as lágrimas, a jovem viu desaparecer no meio da multidão que agora olhava para ela com a curiosidade habitualmente reservada para a jaula dos leões, o pequeno rosto em pranto da sua única amiga.
A jovem virou-se e, dirigindo-se ao sargento que comandava a sua guarda:
Então? perguntou ela rudemente. Que esperas para nos levares?
Aquela soberba criatura tinha uma tal autoridade que o soldado, atrapalhado, respondeu-lhe:
Às tuas ordens!
Puseram-se em marcha através da multidão, que se afastou diante deles. Pelas portas abertas do Duomo, as notas tempestuosas do Requiem acabavam de rasgar o ar.
Após um instante de hesitação, a maior parte da assistência, achando o funeral bem menos interessante do que aquilo que se ia seguir, seguiu-lhes as pisadas. A distância não era grande do Duomo ao Palácio Velho, sede da Senhoria que se aproximava dos dois séculos de existência e, pela via Calzaiuoli a rua dos fabricantes de meias percorreram-na rapidamente. Apoiada no braço de Léonarde, Fiora sentia reforçar-se nela a impressão absurda de ter deixado um mundo agradável, doce e cuidadosamente arranjado, por um outro, ameaçador e estranho, povoado de visões hostis e bocas escarrando injúrias. Todas aquelas pessoas, que ainda no dia anterior a saudavam com um cumprimento, um sorriso ou mesmo alguns-versos, se tinham transformado, ao ouvir a voz vingativa de Hieronyma, em outros tantos inimigos, que talvez a tivessem lapidado sem a barreira de ferro com que a tinham rodeado.
Por que razão murmurou Léonarde, que se esforçava por não ouvir as injúrias que assinalavam o seu percurso por que razão não lhes dizeis que não sois desta cidade, que, pelo casamento, sois uma nobre dama da nossa Borgonha?
Porque não tenho qualquer prova do meu casamento. Não sei onde pôs o meu pai os papéis...
Eu sei. Na noite anterior à sua morte, o vosso pai disse-me muitas coisas...
Das quais, se calhar, não vos podeis servir. Não sabemos o que vai ser de nós e é por vós que eu receio mais... Porque posso contar uma história diferente da de Hieronyma? Não receeis, eu sei defender-me. Além disso, acredito sinceramente que podeis contar com o senhor Lourenço. Ele parece decidido a apoiarvos, defendendo a memória do vosso pai...
É por isso que eu não posso proclamar o meu casamento com Philippe. Arriscar-me-ia a perder o meu último defensor. E o mais poderoso. Mas, lembrei-me agora: sabeis onde está Khatoun? Não a vejo desde que saímos de casa...
Ainda lá deve estar. Ela não queria assistir ao funeral de messer Francesco, porque teme tanto as cerimónias fúnebres como a própria morte...
Prefiro assim. Esta abominável Hieronyma, que nunca foi suficientemente rica para comprar um escravo, seria capaz de a vender em leilão público já amanhã, ou, pior ainda, acusá-la também de feitiçaria...
Estavam a chegar. A silhueta esmagadora do Palácio Velho, com as suas pedras salientes, o caminho de ronda e a alta e esguia torre de Arnolfo, que evocava vagamente uma flor-de-lis ainda em botão, erguia-se diante daquelas que bem podiam ser chamadas de prisioneiras. Uns criados em libré verde abriram-lhes as portas e elas subiram pela estreita escadaria que ia dar à sala do Conselho onde, dentro em pouco, se jogaria o destino de Fiora e daqueles que lhe permaneciam fiéis.
Ao transpor a porta baixa da grande sala, Léonarde benzeu-se e Fiora, quase maquinalmente, imitou-a. Agora, era preciso ir até ao fim. Mas onde estava o fim?
Segunda parte
O PESADELO
CAPÍTULO VII
O PÃO AMARGO
A cela era triste, cinzenta e quase nua: um colchão de palha, pousado sobre duas cruzes de madeira, um cobertor esburacado, um crucifixo na parede cuja brancura inicial sofrera os atentados da humidade, um escabelo para a prisioneira se sentar e um outro suportando uma bacia e duas toalhas rugosas e, por fim, um bacio por baixo da cama, compunha toda a decoração. Aquilo parecia-se tanto com uma prisão que, uma vez lá dentro, Fiora virou-se para protestar, mas já a porta, munida de um postigo gradeado, se fechava e ela pôde ouvir a chave girar na fechadura. Que significava aquilo?
A sessão na grande sala da Senhoria fora das mais agitadas. Perante os priores e o magistrado municipal, reunidos numa espécie de tribunal, Hieronyma repetira a sua acusação apoiada por Marino, que, sempre sem ousar levantar a cabeça, relatou o que vira em Dijon num lúgubre dia de Dezembro. Mas à sua maneira rancorosa: Francesco Beltrami teria matado o marido de Marie de Brévailles para lhe tirar a criança. Léonarde, então, metera-se. Traçou de Regnault du Hamel um retrato alucinante de maldade, que aumentava na mesma proporção a imagem radiosa dos jovens amantes malditos. Falou na emoção de Francesco Beltrami, na sua cólera perante o assassínio friamente decidido de uma criança de poucos dias. Falou no velho padre, no baptismo de Fiora num quarto da Cruz de Ouro e em todos os cuidados tomados pelo negociante florentino para garantir àquela pequenita, que ele amara instantaneamente, um futuro como o que todas as crianças deveriam ter ao chegarem a este mundo demasiado duro para a sua fraqueza. Ele tinha confiança naquele Marino, que agora o traía vilmente, a despeito das benesses recebidas, com uma mulher que, ao descer até ele, se desonrara.
Sim, Francesco Beltrami quisera que aquela criança do seu coração se tornasse sua filha aos olhos de todos e, ao declará-la como tal, mal mentira: não era ela, realmente, a filha bastarda de uma dama de sangue nobre?... Por fim, fina como era, Léonarde Mercet era a primeira vez que Fiora ouvia o nome todo da sua governanta terminara a sua arenga clamando para o servidor infiel a ira do Senhor e todas as piores maldições. Predisse-lhe noites sem sono, as 12 pragas do Egipto abatendo-se sobre ele e sobre os seus bens e, para concluir, a maldição até ao fim dos seus dias com a satisfação, puramente subjectiva, aliás, de ver o miserável encolher-se ao ouvir as suas palavras e perder o sangue-frio até cair de joelhos.