Lourenço de Médicis falara por sua vez, pedindo calorosamente pelo seu amigo defunto e pela juventude inocente da criança por ele eleita. Denunciara a rapacidade da dama Pazzi e o seu estranho comportamento, por, depois de um pedido de casamento recusado, ter obrigado a jovem a pedir justiça por um acto de que não tivera culpa. Infelizmente, cometera o erro de englobar todos os Pazzi, que detestava, no mesmo anátema e Petrucci chamara-lhe a atenção asperamente.
Para a Senhoria, que contava no seu seio com muitos amigos dos Médicis mas também com alguns dos seus inimigos, a situação era confusa e difícil de julgar. Ainda por cima porque o clero se tinha intrometido na pessoa do abade do convento de San Marco, para cujas celas, entretanto, enaltecidas pelos frescos de Angélico, Lourenço gostava de se retirar, mas que, como bom dominicano, se achava um ferrabrás de Satã e das suas criaturas. Ora, para esse monge intransigente, uma criança nascida de amores incestuosos e adúlteros só podia ser uma criatura do demónio, que nenhum baptismo poderia redimir, sendo que a água benta seria mais um sacrilégio.
A sua voz troante impressionou os «magníficos senhores», dos quais alguns eram almas simples e Fiora, por um instante terrível, perguntou a si própria se não iriam preparar para ela uma fogueira no Palácio Velho... Além de que, encorajada por uma ajuda inesperada, Hieronyma voltou a atacar mais venenosamente do que nunca, suplicando aos priores que não permitissem que um tal escândalo se espalhasse por mais tempo sob os céus de Florença, o que só poderia atrair mais perigos e maldições...
Era mais do que Fiora se sentia capaz de suportar. Levada pela cólera, enfrentou a sua inimiga a quem, com voz gelada, acusara de mandar assassinar o seu primo e de querer a sua perda para ficar com a herança fabulosa.
Então, foi o tumulto, a algazarra, a mais assombrosa das desordens. Os apoiantes de ambos os lados da causa injuriaram-se e quase chegaram a vias de facto. Foi preciso que Petrucci mandasse entrar a guarda para restabelecer um pouco de calma na sala que, para dizer a verdade, já vivera muitas situações semelhantes desde os tempos heróicos dos Guelfos e dos Gibelinos. Em Florença as pessoas gostavam quase tanto de zaragata como de festas, cortejos, grandes procissões e belas-artes. Era uma maneira como outra qualquer de provarem que, apesar do poderio dos Médicis, ainda estavam numa república.
Quando, por fim, se conseguiu um certo silêncio, os priores decidiram-se, depois de deliberarem rapidamente com Lourenço. Na impossibilidade de resolverem uma situação que nunca se apresentara à sua sagacidade, decidiram que o conjunto de bens de Francesco Beltrami seria posto sob sequestro enquanto se esperava um julgamento definitivo. Por outro lado, um administrador, cuja escolha foi deixada ao banco Médicis, seria nomeado para assegurar a continuação dos negócios do negociante defunto, para que pudesse ser garantido o trabalho aos seus numerosos empregados. Quanto a Fiora, que acusara sem provas, era passível de prisão, tal como lho deu a entender o sobrolho franzido de Lorenzo. Apesar das cautelas, fora demasiado longe e o Magnífico, apesar de toda a sua influência, teria dificuldade em salvá-la se os priores decidissem aplicar a lei em todo o seu rigor. Então, houve um instante de hesitação, mas que não durou muito. O abade de San Marco voltou à carga empurrando diante de si um monge que trazia, como ele, o hábito branco, o escapulário negro e a cruz de prata dos dominicanos:
Permiti Vossas Senhorias falou ele pelo nariz que vos apresente Frei Inácio Ortega, que vem da nossa casa de Valladolid, em Castela, que impôs a si próprio viajar por toda a cristandade, como em tempos o nosso santo fundador, para pregar o Evangelho e desmontar as armadilhas do Maligno. Frei Inácio, que é um especialista em matéria de diabruras, deseja propor-vos uma solução que talvez agrade a todos...
O recém-chegado apresentou-se como um homem de meia-idade, grande e um pouco curvado. Era quase calvo por completo e a sua alta fronte em forma de cúpula dominava o arco baixo das sobrancelhas.
Tinha um nariz poderoso, uma boca severa e uns olhos que, por trás das pálpebras, escondiam o olhar. A sua presença tinha qualquer coisa de pesado e sinistro, que todos, mais ou menos, sentiram. Convidado a exprimir-se, o monge avançou, as mãos escondidas nas mangas brancas do hábito, saudou como um homem que se sabe superior àqueles a quem se dirige e depois esperou.
Sede duplamente bem-vindo, frei Inácio disse o mais idoso dos priores, que fazia as funções de presidente. Escutamos Vossa Reverência com respeito.
O recém-chegado olhou à vez para Hieronyma e para Fiora, no rosto da qual se demorou um instante e depois, num toscano fácil, mas que a sua voz áspera tornava curiosamente desagradável, disse:
Estas duas mulheres odeiam-se demasiado para que seja possível tirar-lhes a verdade, mas existe um meio de descobrir essa verdade. Proponho que apelemos ao julgamento de Deus. Submetamo-las à prova da água!
Seguiu-se um grande silêncio. Numa cidade como Florença, onde a liberdade de espírito e as luzes da filosofia grega tinham adquirido direitos de cidadania ao ponto de inquietar muitas vezes a Igreja, o juízo de Deus não era muito utilizado, já que era considerado como uma prática de outras eras. De imediato, aliás, Lourenço protestou e todos puderam ver, pelo olhar irritado que lhe lançou, que o monge espanhol não lhe agradava mais do que a sua proposta:
Não poderemos nós, antes de chegar a esse extremo, dar um voto de confiança aos homens que nesta cidade têm a seu cargo a ordem e a justiça: aos nossos magistrados, ao barguell e ao magistrado municipal Petrucci? Eu acho-os capazes de descobrir o assassino de Francesco Beltrami... ou os assassinos, se se trata de um executante.
Aquela lisonja fez descontrair a atmosfera, sentindo-se os priores satisfeitos por lhes devolverem os méritos de que eles se achavam merecedores. Lourenço, encorajado por alguns acenos de cabeça aprovadores, ia prosseguir para explorar a sua vantagem quando Hieronyma avançou e se ajoelhou aos pés de frei Inácio.
Eu estou pronta, no que me diz respeito, a submeter-me ao julgamento do Altíssimo e penso, muito reverendo padre, que tendes
1 o Chefe da polícia.
toda a razão. Só Deus me pode purificar de uma acusação infame, mas que não me espanta, vinda de tal criatura!
O estupor, face à incrível audácia daquela miserável, sufocou Fiora. Desprezaria ela Deus ao ponto de pretender associá-lo ao seu crime e fazer dele seu cúmplice? Mas já Hieronyma se levantava, triunfante e se virava para ela.
E agora tu, filha de ninguém! Que tens a dizer?
Assim interpelada, Fiora, repelindo docemente Léonarde que tentava retê-la, avançou calmamente, mas, em vez de se dirigir ao monge estrangeiro, foi diante da Senhoria que se ajoelhou:
Eu também aceito comparecer perante o tribunal de Deus e repito bem alto a minha acusação: o meu pai, que nunca ninguém me impedirá de chamar assim, foi morto por ordem desta mulher e agradeço ao venerável irmão Inácio por me permitir, assim, conseguir a prova que me falta.
Subitamente, a jovem sentiu uma grande paz. Certamente, sabia que, ao aceitar o juízo de Deus, aceitava ao mesmo tempo a morte quase certa: dentro de dois ou três dias, em camisa e estreitamente ligada por cordas que lhe interditariam qualquer movimento, seria atirada ao Arno totalmente cheio, com poucas hipóteses de reaparecer à superfície, mas, pelo menos, juntar-se-ia ao seu pai, deixando uma vida que já não a interessava. O único ser capaz de a defender já não existia, o homem que ela amava ridicularizara-a e rejeitara-a para sempre e, por fim, acabava de ver afastarem-se dela aqueles que diziam amá-la e a cidade inteira, que ainda ontem lhe sorria e a acarinhava, virar-se contra ela com a alegria feroz dos medíocres que vêm abater-se subitamente um ser até ali privilegiado.