Uma única coisa a consolava: ia morrer, sim, mas Hieronyma partilharia a sua sorte. A menos que... a menos que, no seu cérebro retorcido, concebesse um meio de escapar ao afogamento. Mas, que meio seria esse?
Visivelmente, o Magnífico fazia a si mesmo essa pergunta. O seu olhar sombrio não se afastava de Hieronyma e, assim como Fiora, não conseguia compreender o que levara aquela mulher a sujeitar-se à proposta do monge espanhol. Mas, em seguida à dupla aceitação, o tumulto recomeçou. Toda a gente falava ao mesmo tempo e foi muito difícil restabelecer a calma. Apenas Lourenço e os dois monges permaneceram impassíveis, esperando que a algazarra terminasse. Por fim, os membros da Senhoria conseguiram pôr-se de acordo e decidiram que, volvidos três dias, as duas mulheres seriam levadas para o meio do rio cada uma no seu barco e atiradas à água pela mão do carrasco, depois de se terem confessado e ouvido missa. A decisão da Senhoria dependeria, naturalmente, do resultado da prova. Até lá, as duas mulheres seriam conduzidas, tanto uma como outra, ao convento das dominicanas de Santa Lúcia, para ali se recolherem e viverem em oração até à hora do julgamento.
Fiora escondeu a sua decepção. Esperava que a tivessem deixado aguardar em sua casa, no seu ambiente familiar, o instante supremo, mas isso fora-lhe recusado. Tal como o seu pai, a viagem começada de manhã seria a última... Decididamente, Deus era, por vezes, cruel e a jovem não tinha muita esperança num milagre a seu favor.
Com as lágrimas nos olhos abraçou Léonarde, que soluçava sem reserva depois de lhe terem recusado seguir o destino da criança que tinha criado. A governanta tinha autorização de regressar ao palácio Beltrami até ao resultado da prova. Então, decidiriam o seu caso.
Não tenhas receio murmurou Lourenço de Médícis, que conseguira aproximar-se de Fiora eu cuidarei dela se...
O Magnífico não ousou formular o fim da frase, mas a jovem compreendeu que o seu cepticismo não acreditava muito nas intervenções celestes.
... levo-a para minha casa concluiu ele, mas Léonarde não estava de acordo:
Se vós permitirdes que esta criança deixe a sua vida neste julgamento estúpido declarou ela em francês não ficarei nem mais um dia nesta cidade infame e até ao meu último dia hei-de pedir a Deus que a cubra de maldições!
Esperemos para ver como Ele julgará... suspirou Lourenço, impávido.
Mas já os soldados se aprestavam a conduzir as duas inimigas ao convento. Fiora abraçou uma última vez Léonarde, que se agarrava a ela. Velai pela minha casa e por todos aqueles que nela moram. Cuidai de Khatoun. Ela não tem mais força do que um pequeno gato... No exterior voltaram a encontrar a multidão, que, por qualquer mistério, já sabia o que ia acontecer. A sua longa espera tornara-a ainda mais barulhenta do que durante o funeral de Beltrami e foi no meio de graçolas e até de injúrias que as duas mulheres chegaram ao convento, não longe da porta de San Niccolo.
Nem um único rosto amigo se mostrou durante aquele penoso trajecto, senão, no ângulo da varanda dos Priori, a grande silhueta de Demétrios Lascaris, cujo olhar acompanhou Fiora o mais possível, mas o médico não fez qualquer gesto e a jovem, recordando a ajuda que ele lhe oferecera quando ela não precisava, pensou que aquele homem, por mais estranho que fosse, era exactamente como os outros: preocupado, antes de mais, com a sua própria segurança. Aliás, pensando bem, ele não tinha razão nenhuma para se preocupar com ela... O que não impedia que aquele último abandono lhe fosse penoso e quando a pesada porta de Santa Lúcia se fechou, Fiora teve a impressão de ouvir fechar se a pedra da sua tumba...
Sentada no seu leito miserável, Fiora revivia sem cessar as horas daquele terrível dia. Sentia-se cansada e moída, como se lhe tivessem batido com um pau. Aquela cela representava para ela a última decepção, porque sabia, por ali ter ido em visita duas ou três vezes com Chiara para rezar e cuja prioresa, Madre Maddalena degli Angeli, era vagamente sua prima, que as freiras e as damas que iam fazer retiro ao convento dispunham de um cubículo austero, sem dúvida, mas de limpeza perfeita, ornamentado com imagens santas e abrindo para o claustro, no centro do qual florescia um belo jardim. A estreita janela do seu alojamento, guarnecida de duas barras de ferro em cruz, dava para o pátio traseiro, onde se amontoavam os detritos e onde se encontravam as latrinas. O odor era penoso e, prisão por prisão, Fiora lamentava que não a tivessem fechado antes numa verdadeira masmorra, porque aquele local ignóbil era a justa medida da consideração que tinham por ela.
As suas derradeiras ilusões, se ainda tinha algumas, desapareceram quando, ao cair da noite, uma irmã leiga, cujo hábito constelado de nódoas proclamava que trabalhava na cozinha, lhe trouxe um bocado de pão duro, uma bilha de água e uma malga de sopa de couves, na qual nadava um pedaço de toucinho rançoso. Enojada, Fiora repeliu a escudela:
A cozinha do convento não fez progressos desde a minha última visita troçou ela. Pensava que tinha direito a outro tratamento?
Ora vejam a delambida! exclamou a irmã, que era uma rapariga vermelhuda e com bigode. A nossa madre já faz muito ao consentir em receber aqui e alimentar uma rapariga do diabo como tu! Devias agradecer-lhe de joelhos.
Ah! Porque agora sou uma filha do diabo? Portanto, fui baptizada. Mas, não há muito tempo, quando aqui vinha, não se poupavam a lisonjas nem a doçuras para com a filha do muito rico Francesco Beltrami. E agora tenho de agradecer de joelhos uma sopa que nem os porcos quereriam? Vai dizer à tua madre superiora que quero falar-lhe!
Ninguém fala assim à madre superiora! Ela está na capela para unir as suas preces às da santa dama que nos enviaram contigo e que vai sofrer por tua culpa.
Ouvir falar de Hieronyma como de uma santa era o cúmulo! Fiora olhou para a gorda religiosa com franco nojo e encolheu os ombros:
E eu não tenho o direito de rezar? Quero que me levem à capela!
As feiticeiras fingem sempre que são melhores cristãs do que as verdadeiras. As nossas irmãs não querem sujar-se com a tua presença e, se quiseres rezar...
Com o seu dedo gordo tremendo de cólera, designou a cruz pendurada da parede:
Reza aqui! Nosso Senhor está em toda a parte, mas, claro, as tuas iguais só sabem rezar ajoelhadas em almofadas de veludo e respirando o perfume do incenso...
Desaparece! gritou Fiora furiosa. E leva esta sopa ignóbil. O pão e a água chegam...
Com um sorriso mau, a irmã deixou cair a escudela, que se partiu, salpicando a bainha do vestido negro de Fiora:
Vou dizer que foste tu que fizeste isto disse ela maldosamente. Espero que te dêem com o chicote!
Não o aconselho às tuas irmãs, senão dentro de três dias, quando estiver diante da Senhoria, direi como fui tratada nesta casa, à qual fui confiada. Aliás, di-lo-ei de qualquer maneira. Direi como fizestes diferença entre mim e a mulher que assassinou o meu pai. Ficarei surpreendida se monsenhor Lourenço ficar satisfeito.
A irmã saiu batendo com a porta, mas sem se esquecer de dar duas vezes a volta à chave. Só, Fiora foi sentar-se no leito. Nunca sentira o coração tão pesado. Estava resignada a morrer, mas seria mesmo necessário que os seus últimos dias se passassem na indignidade, na sujidade e na mesquinhez? Não seria já suficientemente duro só ter esperança na morte, quando só tinha apenas 17 anos?