Pela sua parte, Fiora não lamentava nada e, se sobrevivesse, sabia que nunca pediria a um chicote, ou a um cilício, que lhe arrancasse a recordação das carícias que tinha conhecido. O seu estranho marido só quisera uma noite de amor e tinha-lha dado, inesquecível. Nunca Fiora procuraria apagar essa recordação, bem pelo contrário e se agora desejava vingar-se era, sobretudo, pelos meios empregues para conseguir essa mesma noite... e a grossa maquia em ouro que era o seu corolário. Porque Philippe não hesitara em acordar o amor de uma jovem, sabendo muito bem que depois de a ter feito sua a abandonaria para sempre. O borgonhês concretizara os negócios do seu senhor, ao mesmo tempo que satisfizera o seu próprio desejo. Quanto à fábula que dizia que ele queria morrer, a jovem não acreditava nela. O senhor de Selongey amava, demais a vida para sonhar, sequer, perdê-la. Fazia amor demasiado bem para renunciar a ele para sempre... Outras mulheres receberiam os seus beijos, as suas carícias e, se bem que o pensamento lhe fizesse ranger os dentes de raiva, impotente, Fiora não o repudiava. Philippe soubera manobrar engenhosamente o hábil comerciante que era Beltrami, para embaraçar a sua consciência com a recordação de um casamento mesmo desonroso que renegaria no dia seguinte. Era tão fácil esquecer aquela que com tanta desenvoltura ele condenara a definhar lentamente sem marido e sem filhos na vã sumptuosidade de um palácio florentino. O mais engraçado era que ele ignoraria, sem dúvida durante muito tempo, senão para sempre, o destino trágico da efémera condessa de Selongey...
Uma ideia súbita atravessou o espírito da jovem, excitado pela cólera e pela impotência: restava-lhe um meio, talvez, um único, de frustrar as intrigas do seu marido: Philippe levara o seu dote real, sabia-o, sob a forma de uma letra sobre o banco Fugger em Augsburgo, uma letra que, se calhar, ainda não tinha sido paga. Dentro de dois dias, antes de a mandarem entrar para o barco, acorrentada, proclamaria bem alto, diante dos Médícis, aquele casamento que os ofenderia, pedindo apenas, se ainda não fosse tarde, que a contrapartida em ouro dessa letra não fosse entregue. Assim, vingar-se-ia ao mesmo tempo de Philippe e desse Temerário, ao qual ele ousara sacrificá-la! Podia morrer tranquila!
Deus sabia, no entanto, que a ideia dessa morte a horrorizava. A espécie de estado de graça que conhecera quando, no seguimento de Hieronyma, decidira submeter-se ao juízo de Deus, desaparecera. Agora, estava face a si própria: uma rapariga de 17 anos, cheia de saúde e que diziam bela, uma rapariga que tinha uma enorme vontade de viver, de respirar o ar doce da Primavera, de sentir na pele a carícia do sol, de rir com uma amiga da sua idade, de ler belos livros, de escutar os acordes do alaúde e o canto dos poetas... de amar, mesmo se, para ela, essa palavra se escrevesse como odiar. E, sobretudo, uma rapariga que não queria apodrecer no fundo das águas amareladas pelas lamas do Inverno do rio que corria diante da janela do seu quarto...
Uma oração encontrou, subitamente, o caminho dos seus lábios:
Senhor, se eu tenho razão, fazei com que não morra!
Talvez para provar a si própria que continuava viva, a jovem sentiu a necessidade de se sentir ocupada, mesmo se a estreiteza da sua prisão não lhe dava muito espaço. Deitou água na bacia, arrancou, mais do que tirou o seu vestido de tecido fino negro que cheirava terrivelmente a couves e tratou de se lavar o melhor possível. Porque não era fácil com tão pouca água e o sabão grosseiro, feito de sebo e cinza de madeira, só de longe se assemelhava aos delicados cremes perfumados que o boticário Landucci mandava vir de Veneza, mas ela sentiu um certo conforto ao sentir-se lavada. Em seguida, com o pente que encontrara, desenredou e alisou longamente os seus espessos cabelos negros, onde permanecia um vestígio do perfume caro que Khatoun lhe pusera enquanto a penteava. Lamentou-o porque não era bom evocar as imagens de um passado agradável e, esforçando-se por pensar noutra coisa, entrançou os cabelos numa espessa trança, que deixou cair sobre o ombro esquerdo. Por fim, vestiu o hábito branco que lhe tinham deixado. A lã, tecida no convento, era rude, mas, pelo menos, estava lavado e, no fim de contas, era agradável de usar...
O tinir de uma campainha atraiu Fiora à pequena janela que dava perto da porta, para as arcadas do claustro. A jovem viu a longa fila branca e negra das religiosas dirigindo-se para a capela naquele passo silencioso provocado pelas sandálias de corda entrançada. Nenhuma virou a cabeça na sua direcção, desaparecendo por trás das portas da capela entoando o Veni Creator...
O eco das suas vozes permaneceu mesmo depois de as portas se terem fechado e Fiora ficou ali a ouvi-las e a contemplar a ordem fresca do jardim interior, plantado com loureiros, teixos e limoeiros, rodeando os canteiros cercados de buxo, onde as freiras cultivavam plantas medicinais. No meio havia uma bacia de pedra com um delgado jacto de água, onde as aves iam beber. E era uma imagem tão bela, tão tranquila e doce, que a cativa ficou ali um longo momento a contemplá-la. Seria, sem dúvida, uma das últimas que lhe seria dado admirar, mas, pelo menos, os seus olhos poderiam encher-se de beleza até ao momento da partida. Depois, não teria mais do que erguê-los para o céu e fechá-los... para não mais os abrir.
Mas, coisa estranha, quanto mais Fiora se esforçava por se resignar, menos o conseguia.
O dia foi longo. A cativa passou-o quase todo a observar o jardim e o voo dos pombos. Mas perdeu muito do seu encanto quando viu Hieronyma, sempre vestida com o seu traje fúnebre, passeando-se pelo braço da madre Maddalena, como se se conhecessem desde sempre... E, subitamente, a jovem recordou-se do que lhe dissera Chiara numa das suas visitas: a superiora das dominicanas dava-se, sem dúvida, com os Albizzi, mas tivera por mãe uma Pazzi. Era naquele parentesco que era preciso procurar a causa do tratamento de favor de que gozava a sua inimiga. Esta permanecia um membro da nobreza florentina, ao passo que a ela lhe recusavam o direito de se dizer filha de Francesco Beltrami. A outra era recebida como uma amiga, ao passo que Fiora era vista apenas como uma prisioneira.
Entretanto, a sua ameaça de denunciar publicamente o tratamento indigno a que a submetiam dera os seus frutos com aquela mudança de alojamento. E quando a meio do dia lhe trouxeram a refeição, esta, sem ser faustosa, era farta: almôndegas de vitela com puré e um bocado de pão branco. Apenas a água continuava a mesma... Fiora devorou tudo, pensando que a fome não era uma boa companheira de combate e que se luta melhor quando se está na plena posse das suas forças. Aquela ideia fez-lhe companhia durante o resto do dia, mas, quando a noite caiu, reapareceu a angústia. Teria sido agradável ter junto de si uma amiga a quem se confiar, porque naquele convento, onde ainda há pouco lhe sorriam, nenhum rosto se queria virar para ela. Pior ainda: ninguém se queria aproximar dela.
As freiras estavam de novo na capela para cantar as vésperas, que é a última oração da noite, quando de súbito, aquela que viera ter consigo de manhã apareceu de novo, sempre muito fria, sempre muito distante, de vela na mão.
Põe esse véu na cabeça! ordenou ela apontando para o tecido branco com que Fiora não julgara útil cobrir-se e segue-me!
Onde vamos?
Já vais ver! Mas aconselho-te a que tenhas uma atitude menos arrogante! No lugar onde te vou conduzir impõe-se um comportamento modesto e não esse olhar seguro e nariz arrebitado!
Desde a minha mais tenra idade que me aconselham a manter a cabeça bem erguida... seja em que circunstância for!
A religiosa encolheu os ombros, saiu da cela e encaminhou-se para a direcção oposta à que ia dar à capela. Fiora seguiu-a. A corrente de ar que ali reinava apagou a chama da vela, aliás inúticlass="underline" a noite que banhava o jardim interior era suficientemente clara para que se orientassem e Fiora, que estava fechada desde manhã, respirou os odores frescos com delícia. Mas, de facto, não foram longe: até ao outro lado do claustro, onde a freira abriu uma porta baixa e mandou entrar a sua companheira. As duas mulheres encontraram-se na soleira de uma sala bastante grande, onde uma abóbada romana se apoiava em pesados pilares redondos. Ali, por trás de uma mesa sobre a qual ardia um archote de cinco mechas, estavam sentadas duas personagens, imóveis sob as pregas negras e brancas dos seus hábitos quase iguais: a madre Maddalena degli Angeli e o monge espanhol de San Marco: frei Inácio Ortega.