Obrigada, irmã Prisca! disse a prioresa. Quanto a ti, Fiora, aproxima-te. Aqui o nosso venerável irmão Inácio deseja fazer-te algumas perguntas. Não te esqueças, ao responder-lhe que ele é um enviado do nosso Santo Padre o Papa Sisto, que Deus queira conservar com a sua saúde e santidade.
Fiora inclinou-se sem uma palavra, perguntando a si própria que faria um enviado do Papa num convento de mulheres àquela hora. Também não percebia muito bem o que teria ele para lhe dizer, mas, lembrando-se que fora ele que propusera o juízo de Deus, pensou que era melhor ter cuidado.
Seguiu-se um silêncio. Apoiado na cadeira de madeira escura em que estava sentado, o monge, de olhos meio fechados, olhava para a alta e delgada silhueta branca que tinha diante de si, direita e digna, sem medo aparente, mas também sem sobranceria. As chamas do candelabro cinzelavam os traços do rosto delicado e punham reflexos dourados nos grandes olhos cinzentos sob a brancura do véu de onde deslizava, para cima de um ombro, a espessa trança de cabelos brilhantes. Frei Inácio mordiscou os lábios finos, que humedeceu em seguida com a ponta da língua. Depois, abandonando com um suspiro a sua pose descontraída, encostou-se à mesa:
Tu pretendes chamar-te Fiora Beltrami? perguntou ele depois de ter deitado uma olhadela a uns papéis pousados diante de si.
Nunca me chamei outra coisa. A reverenda madre aqui presente pode atestá-lo: ela conhece-me há muito.
Mas pode ser que tenhas abusado da reverenda madre, assim como de toda a cidade e não tenhas direito a esse nome.
Tenho o direito que me concedeu a Senhoria, ao assinar o acto de adopção que o meu pai lhe entregou.
Mas esse acto de adopção é falso, porque o teu... pai enganou conscientemente a Senhoria. Na realidade, tu és a filha de dois miseráveis que a justiça de Deus mergulhou no fundo dos Infernos.
Só Deus pode dizer que justiça é a Sua e eu creio, antes de tudo, na sua misericórdia.
A voz de Fiora permanecia tão firme como a sua atitude.
Erguendo as suas pálpebras engelhadas, frei Inácio fixou-a, como se através da intensidade do seu olhar quisesse reduzi-la à submissão. Fiora encontrou aqueles olhos sem cor definida e não baixou os seus. Um ligeiro rubor coloriu as faces magras do monge espanhol.
Atitude cómoda! Será porque temes essa justiça? No entanto, aceitaste com facilidade submeter-te à sentença do juízo de Deus! É verdade que foste um pouco obrigada... Não foste tu a primeira a aceitar, mas sim aquela que acusaste. Se ela está inocente, como tudo leva a crer, tu vais morrer. Não temes a morte?
Mentiria se dissesse que não. Eu tenho 17 anos, reverendo padre mas, se tenho razão, não morrerei. Hieronyma, pelo contrário, morrerá e é a ela que deveríeis perguntar por que razão o aceitou ela com tanta facilidade...
Mas, justamente, porque a sua consciência é tão pura como a sua alma exclamou a madre Maddalena e porque a sua fé em Deus é total. Não sei se se poderá dizer o mesmo de ti!
Erguendo a mão num gesto apaziguador, frei Inácio pôs fim à intervenção da prioresa.
Veremos isso mais tarde. Quem é o teu confessor?
Fiora hesitou. Ela confessava-se raramente, tanto ao cura de Santa Trinita como ao capelão de Orsanmichele, sem que fosse possível dizer qual tinha a sua preferência. Era uma questão de horas e de humor, porque, nunca tendo conhecido grandes pecados, parecia-lhe uma coisa sem interesse ir confiar os seus pensamentos mais íntimos a um quase desconhecido. A jovem confessou francamente essa dupla participação na sua vida religiosa e compreendeu de imediato que acabava de escandalizar frei Inácio ao ver o seu grande nariz estremecer:
O quê? Não tens um director de consciência?
Eu sempre tive confiança no juízo e rectidão do meu pai. Ele é que era o meu director de consciência...
Um homem que mentia tão bem? E que, naturalmente, não te empurrava muito na direcção da Igreja. Era a ela que devias ter sido confiada desde o teu nascimento, para que pudesses expiar, nos rigores benfazejos de um convento, o crime e o grande pecado da tua concepção, que o baptismo não foi suficiente para apagar...
O meu pai não achava que eu deveria pagar por um pecado que não cometi. Ele queria que eu acreditasse que era uma rapariga como as outras. Queria que eu fosse feliz...
É por isso, sem dúvida cortou a madre Maddalena que ele te educou nos preceitos ímpios desses filósofos antigos, cujo pensamento infecta esta cidade, onde se consagra a esses escritos profanos, às artes, às festas e ao prazer o que se devia consagrar apenas a Deus.
O sumo pontífice sabe tudo isso, minha querida irmã e preocupa-se seriamente. A desordem espiritual de Florença aflige-o ainda mais porque o exemplo vem de cima. Os irmãos Médicis fazem pouco da fé cristã e da honra das mulheres. O adultério e o deboche espalham-se livremente pela sua corte. Eles chamaram aos seus conselhos gente baixa, ao mesmo tempo que, por meio do exílio, da morte ou simplesmente do desdém, afastaram aqueles que desde sempre contribuíram para a riqueza e bom nome da cidade... Mas Deus não os esquece!
Fiora olhou com estupor para aquele monge, que parecia em estado de transe. Com os olhos postos na abóbada, como se estivesse à espera que ela se abrisse para dar passagem ao castigo celeste, erguera-se e, apoiado com as duas mãos na mesa, vociferava o seu furor fanático... e o seu ódio pelos Médícis...
Acreditais que um dia o Anticristo se afastará de nós? perguntou a madre Maddalena com as mãos unidas e os olhos marejados de água.
Frei Inácio regressou bruscamente à terra e enxugou o suor que lhe perlava o crânio calvo: É o que espera Sua Santidade e eu não fui enviado aqui se não para lhe trazer o socorro dos meus olhos e dos meus ouvidos. Eu sou estrangeiro, portanto imparcial, mas o que vi e ouvi até agora faz-me lamentar que a poderosa máquina da Inquisição, tão florescente quando estava nas nossas mãos, tenha finalmente sido confiada aos irmãos pregadores, que não se preocupam muito com ela. Entretanto, seria desejável que ela retomasse o seu rigor nestes países e aliás, a rainha Isabel de Castela, por quem fui enviado a Roma, desejaria que o Papa autorizasse a sua instalação nos seus reinos, nos quais ela prossegue a sua reconquista face aos Mouros infiéis... mas, parece-me que nos afastámos um pouco do caso desta rapariga, a quem tudo isto não diz respeito. Ela olha para nós com olhos arregalados, que devia aprender a baixar!
Não tão afastados quanto isso, muito reverendo irmão. Não é ela o pior exemplo daquilo que produz uma educação onde Deus não entra?
Ler livros nunca impediu fosse quem fosse de servir e amar o Senhor protestou Fiora, indignada. Eu acho que sou tão boa cristã como...
Como eu, talvez? Não sejas vaidosa, Fiora!...
Deixemos isso, minha irmã e acabemos com isto! cortou frei Inácio secamente. Por agora, estou aqui para tentar salvar uma alma, se ainda for a tempo. Tu disseste-me, há pouco, que temias a morte, rapariga pecadora? Quero acreditar em ti, porque, com efeito, tu és jovem... e bela, mesmo se essa beleza é obra do Maligno. Portanto, faço-te uma pergunta simples: queres viver?
Viverei se Deus quiser e se o rio não me engolir disse Fiora calmamente.
És corajosa, reconheço-o... a menos que contes com a ajuda... do Outro?