Do Outro? Qual outro?
Não te faças inocente, porque os teus olhos não têm nada de inocente. Estou a falar daquele que os feiticeiros e feiticeiras invocam e tu tens tudo o que é preciso para ser uma. Já vi iguais a ti sorrirem face a uma fogueira...
Mandastes-me vir aqui para me insultar? exclamou Fiora, revoltada. Eu não sou nenhuma feiticeira, assim como não o eram os meus infelizes pais, cujo único crime foi amar quem lhes era proibido!
Não te aconselho a invocá-los muitas vezes! Mas seja, acredito em ti: tu não és uma feiticeira disse o monge com a voz subitamente diferente, tão doce e envolvente como antes dura e cortante. Tu não passas de uma ovelha tresmalhada, por teres maus donos. É por isso que me proponho salvar-te.
Tens, portanto, o poder de evitar que eu seja atirada à água, quando toda a cidade espera isso com impaciência?
Vejo que não tens muitas ilusões sobre o que podes esperar dos teus antigos amigos! disse frei Inácio com um pequeno sorriso. Dito isto, não me é possível evitar o juízo de Deus. A única pessoa que o pode fazer és tu mesma.
Eu?
Quem mais? E basta uma pequena coisa: reconhece diante de mim, aqui mesmo, que acusaste falsamente... talvez sob o império do desgosto como vês, esforço-me por te compreender! aquela pobre mulher... Lembra-te que ela agarrou, como se fosse a sua última hipótese, a terrível prova que eu propus. Portanto, não pode ser culpada. Reconhece que te enganaste e eu farei com que os daqui se acalmem...
E se eu aceitar, que me acontece depois?
Primeiro, ficarás aqui no convento, aos cuidados da madre Maddalena. Será mais prudente, porque tu própria o disseste: estes bons florentinos só vêem em ti... uma filha de ninguém. Não poderás recuperar os bens do teu pai: Médicis ficará muito feliz por poder guardá-los para ele. Serás desonrada e atirada ao rio...
Por que razão seria obrigada a ficar aqui? Podia muito bem saír de Florença!
Mas, tu sairás de Florença. Quando os espíritos estiverem um pouco mais calmos e estiveres um pouco esquecida, far-te-ei conduzir a Roma, onde Sua Santidade, a meu pedido, te acolherá. Poderás, então escolher entre um convento agradável ou o serviço de uma nobre dama qualquer. A sobrinha do Papa, por exemplo: a condessa Catarina... Ela receberia, certamente com bondade, uma jovem indignamente abandonada e espoliada pelos Médicis.
Fiora, a princípio desorientada pelo tom subitamente amigável do monge espanhol e sem perceber os desígnios que o levavam a tentar que ela renunciasse à sua acusação, compreendeu subitamente. Vindo para fazer um inquérito acerca da depravação e supostas violências de Lourenço e Giuliano, frei Inácio contava fazer dela um dos peões do seu jogo. Se bem que pouco a par da política, sabia o suficiente para não ignorar que Sisto IV, inimigo mortal dos Médicis, porque desejoso de oferecer Florença ao seu sobrinho Girolamo Riario, marido de Catarina Sforza, esforçava-se por reunir à sua volta todos os inimigos do senhor da cidade cobiçada. Fiora juntar-se-ia em Roma a Francesco Pazzi, o vencido da giostra, de quem se dizia que estava a ser aliciado pelo Papa para os seus negócios de prata e que transferira para Roma, com a bênção do velho Jacopo, a maior parte da fortuna familiar. Entretanto, Hieronyma, reconhecida como inocente e pura, constituiria um insulto vivo para Lourenço, que tentara defender Fiora... e, certamente, conseguiria que lhe fosse atribuída pela Senhoria uma boa parte da fortuna dos Beltrami.
Vendo que a jovem se mantinha em silêncio, frei Inácio impacientou-se:
Então? Que tens a dizer? Creio que a minha oferta é generosa?
Também acho disse a prioresa. Pela minha parte, aceito manter-te aqui, onde serás tratada como a protegida da Igreja que em breve serás...
Fiora olhou para um e para outro: para ela, com os seus olhos ainda húmidos por uma estúpida ternura e para ele, com o tique enervante da boca, que mordiscava e humedecia. Tanto um, como o outro, causavam-lhe repugnância.
Agradeço-vos a ambos... muito sinceramente pelo interesse generoso que tendes por mim, mas prefiro enfrentar o juízo de Deus. Espero que ele me permita provar que tenho razão!
Frei Inácio, que voltara a sentar-se, saltou da cadeira como se tivesse sido impelido por uma mola:
Pobre louca! Acabas de assinar a tua condenação à morte! urrou ele, ao mesmo tempo que a sua companheira erguia as mãos e os olhos ao céu.
Tu não sabes nada, reverendo padre! Eu posso sobreviver ao afogamento.
Mas não ao fogo! Eu tinha razão: tu não passas de uma feiticeira e, se por infelicidade o rio te deixar viva, será à fogueira que farei com que te condenem! Como farei, talvez, com que condenem um dia o Médicis e todo o seu bando. Não ignoro que ele tem com ele um médico mágico e vidente grego, que não pode ser senão um subordinado de Satanás! Quando o Papa estender a sua mão sobre esta cidade maldita, todos eles arderão... mas tu, tu arderás antes deles, para maior glória de Deus!
O monge perdera o domínio de si próprio e à luz ondulante das velas a sua boca espumante, retorcida de raiva e os seus olhos chamejantes davam-lhe o ar de um demónio.
Será o que Deus quiser. Mas tu devias deixar que Ele próprio se encarregue da sua glória. Ele percebe certamente mais disso do que tu!
É a tua última palavra? Recusas?
Recuso. E agora, com a tua autorização, gostaria de regressar à minha cela. Faz-se tarde... e eu gostaria de rezar em paz.
Sacrilégio! O fogo do inferno espera-te depois do dos homens! O monge gritava tão alto que, temendo sem dúvida que ele fosse ouvido por toda a comunidade, a madre Maddalena apressou-se a chamar de novo a irmã Prisca batendo as palmas. A religiosa não devia estar longe, porque apareceu imediatamente. No instante seguinte, Fiora regressava atrás dela para o seu alojamento. Mal tinha entrado quando ouviu as freiras a sair da capela. A jovem ouviu-lhes os passos deslizantes e os cochichos: as filhas de Santa Lúcia deviam perguntar a si próprias por que razão a madre superiora não assistira ao ofício da noite. Depois, deixou de ouvir qualquer ruído, senão, na vizinhança, os latidos furiosos de um cão e, um pouco mais tarde, o apelo repetido dos soldados da guarda, que, nas muralhas, chamavam de uma torre para a outra.
Fiora viu que na sua ausência lhe tinham levado o jantar. Era composto por pasta de queijo com uma salada de manjericão. Mas estava tudo frio. A jovem comeu um pouco. Achando o prato pegajoso, vingou-se no pão e na água. A despeito de não se ter mexido muito durante todo o dia, sentia-se fatigada, mas era sobretudo o espírito que estava cansado... Quando as portas do convento se fecharam após a sua entrada, Fiora esperara gozar, ao menos, um pouco de paz. Ora, desde que entrara naquele lugar dedicado à oração e meditação, só encontrara maldade, mesquinhez e desprezo. Tivera de defrontar um casal de fanáticos, decididos a empregar todos os meios para lhe impingirem os seus desígnios tortuosos. O monge ameaçara-a, até, com a fogueira. Mas ela não cedera, apesar do medo que aquele monge lhe inspirava e sentia-se feliz...
Sentiu que só lhe restavam dois dias e o seu coração apertou-se, face ao tempo que fugia inexoravelmente. O seu destino, começado numa prisão, deveria mesmo acabar noutra prisão? A jovem pensou na sua mãe e em tudo o que suportara. Como Marie devia ter sofrido, no corpo e na alma, durante as horas penosas do parto, vigiada por carcereiros sem piedade, com a ideia terrível de que não teria o direito de ver viver aquele pequeno corpo saído do seu ventre e que, certamente, seria votado à morte a breve trecho! Dias e noites de agonia, talvez com o gládio do carrasco como única esperança... Mas, pelo menos, era apoiada pelo seu amor próximo, um amor que na última hora pudera pegar pela mão, ao passo que o de Fiora clamava no deserto... Como tudo teria sido diferente se Philippe a tivesse amado como Jean aquele Jean em quem ela não conseguia ver um pai tinha amado Marie!