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Um dia, aquele estranho marido saberia que aquela Fiora, que ele jurara amar, defender e guardar em sua casa para o melhor e para o pior, morrera miseravelmente. Derramaria por ela uma lágrima? Ou teria pena? Não, um Selongey não devia saber chorar. Sentiria apenas um grande alívio. A vergonha deixaria de existir, a sujidade teria sido lavada... Ele poderia virar-se alegremente para outra mulher... uma mulher que talvez já ocupasse a sua vida e os seus pensamentos?

Naquela noite, Fiora não conseguiu rezar. Deus estava demasiado longe, demasiado indiferente, já que permitia que pesasse sobre uma inocente o peso de uma maldição imerecida. Quanto aos representantes da Sua glória e bondade, que Ele tinha posto no caminho da sua vítima, não conseguiam mostrar os doces rostos do Crucificado e da Sua Santa Mãe... E foi a chorar que Fiora adormeceu.

O dia seguinte foi sombrio. De manhã cedo uma outra irmã leiga apareceu para levar a escudela ainda cheia e proceder a uma rápida limpeza da cela, mas manteve os olhos obstinadamente baixos durante o tempo todo que durou o seu trabalho e não respondeu a nenhuma das perguntas que Fiora lhe fez.

Ninguém apareceu durante o resto do dia. Constatando que não lhe traziam nada de comer, Fiora pensou que tinham decidido aplicar-lhe um severo regime de penitência, consequência evidente da sua atitude face à espécie de tribunal constituído pela velha prioresa e pelo monge espanhol. A jovem resignou-se, lamentando apenas, quando soasse a hora do juízo de Deus, afrontar a prova com as forças diminuídas.

Passou o dia todo deitada na cama. Uma chuva fria caía incessantemente desde manhã, alagando o jardim onde já não havia aves e Fiora sentiu o seu coração pesar cada vez mais à medida que o tempo passava.

Para sua grande surpresa, a mesma irmã que viera de manhã, regressou à noite com pão, água e uma grande escudela com uma sopa espessa, que cheirava a legumes frescos. E para sua surpresa ainda maior, falou-lhe.

Está quente disse a leiga. Despacha-te a comê-la!

O tom era quase amigável e Fiora sentiu o seu coração aquecer. Era a primeira criatura, naquela casa, a dirigir-se-lhe como a um ser humano.

«Obrigada», disse ela com um sorriso que não lhe foi devolvido. Mas não tinha importância. Com o apetite da sua idade, atacou a sopa que lhe pareceu suculenta, se bem que tivesse um gosto um pouco invulgar, difícil de determinar. Mas a jovem não teve tempo de fazer a si própria qualquer pergunta, porque, mal meteu à boca a última colherada, a escudela escapou-lhe das mãos. Os seus olhos fecharam-se e Fiora caiu num sono profundo...

CAPÍTULO VIII

O MULHERÃO

Fiora abriu os olhos para um cenário tão diferente daquele em que adormecera, que voltou a fechá-los de imediato, pensando que estava a sonhar, mas a sua cabeça, pesada e dorida, a boca seca e uma penosa sensação de náusea trouxeram-na de volta a uma realidade bem diferente. Abriu de novo as pálpebras e tentou levantar-se, mas a tontura que lhe atingiu a cabeça obrigou-a a deitar-se de novo com um gemido. Imóvel, então, contemplou sem compreender o quadro inverosímil no meio do qual se encontrava.

Aquilo parecia-se com uma estufa, porque havia uma grande selha de madeira pousada num solo de lajes, no qual estava escavado um rego para evacuação de águas, que terminava num buraco escavado na muralha. Havia também um braseiro, aliás apagado, mas cujos fumos tinham enegrecido o tecto grosseiramente rebocado. Também se parecia com uma prisão, porque a divisão era mal iluminada de cima por um respiradouro e parecia-se também, finalmente, com um quarto, porque a cama, na qual Fiora estava deitada, suficientemente grande para acolher três ou quatro pessoas, era confortável. Os lençóis e cobertores estavam limpos, mas as cortinas que a rodeavam, feitas de um tecido de grandes ramagens berrantes vermelhas e amarelas, algo desfiadas, mostravam, aqui e ali, fios brilhantes, sinal de um passado mais faustoso. Sobre uma grande arca verde cuja pintura estava escamada, um candelabro de ferro, cheio de cera sólida, suportava seis velas que iluminavam a parede, em frente da qual se encontrava o leito. Ora, essa parede estava pintada...

Grosseiramente, sem dúvida, porque não tinha a mão dos jovens génios que faziam o orgulho de Florença, antes pelo contrário um grande sentido do realismo e um verdadeiro abuso de cores, o pintor desconhecido tinha espalhado pela parede os amores de uma ninfa roliça e de um sátiro membrudo. Espantada, Fiora corou e fechou os olhos com força, para não ver aquela imagem ordinária.

Se pretendes fingir que estás a dormir disse uma voz de aguardente essa não é a maneira ideal!

Reabrindo os olhos com prudência, Fiora já não viu a pintura. Esta fora substituída por uma espécie de monstro: uma criatura talhada como um mercenário alemão, do qual tinha a voz áspera, mãos parecidas com pás de bater roupa, ombros de carregador e braços extremamente musculosos. Da posição alongada em que se encontrava Fiora, parecia imensa e quase tão larga quanto alta. No entanto, tinha de se render à evidência: a criatura era uma mulher! Atestavam-no os seios que apontavam como canhões sob a seda verde-crua do vestido e os longos cabelos ruivos crespos, que enquadravam um rosto com as dimensões do resto, mas que, talvez, tivesse alguma beleza se fosse desembaraçado da camada de pintura e se os olhos fossem maiores; pareciam-se, com efeito, com dois seixos verdes, dos quais tinham a devida ternura. Uma profusão de jóias tilintantes complementava a personagem, cintilando a cada um dos seus movimentos.

Eu não estou a fingir que durmo disse Fiora mas gostava de saber onde estou.

Isso n’é difíciclass="underline" tás em minha casa.

E onde é isso, a tua casa? E quem és tu?

A mulher apoiou-se às colunas do leito que tremeu sob o choque, provocando em Fiora uma nova dor.

Na precisas de saber onde é a minha casa! Quanto a mim, chamam-me Pippa, a grande Pippa, ou ainda o Mulherão. Como não frequentamos o mesmo mundo, isso na te deve dizer grande coisa.

Não... absolutamente nada. Mas, como vim parar aqui? Eu adormeci ontem à noite no convento.

Na foi ontem: foi antes d’ontem. Tava a ver que nunca maisacordavas... A minha opinião é qo’as freiras tiveram a mão demasiado pesada co’a droga...

Uma... droga? Mas porquê?

Pippa desatou num riso relinchante, mostrando uns dentes capazes de moer o trigo:

Por pura bondade. São umas santas mulheres, sabes? Devem ter pensado qu’era mau negócio deitarem uma mercadoria tão boa à água.

Queres dizer... que foram elas que me trouxeram para aqui?

N’exageres! Tás a ver umas irmãzinhas a virem aqui? E voltou a relinchar.

Por piedade gemeu Fiora cala-te! Dói-me imenso a cabeça... e o coração! Parece que tenho lã na boca.

Pippa parou, franziu o sobrolho e pousou a sua pata na fronte da jovem:

É mesmo o qu’eu dizia: elas tiveram a mão muito pesada. Vamos já tratar disso!

A mulher regressou pouco depois com uma grande taça de barro, na qual fumegava um líquido de odor agradável. Colocou-a nas mãos de Fiora e depois, segurando-a pelos ombros, fê-la sentar-se.

Bebe tudo! Eu sei qu’está quente, mas na faz mal.

Fiora queimou-se heroicamente. Amarga apesar do mel que lhe tinham acrescentado, a tisana continha uma forte dose de limão, mentol e uma outra substância indefinível. Depois de a beber toda, a jovem ficou vermelha até à raiz dos cabelos e a transpirar como uma alcarraza. Sem querer ouvir os seus protestos, Pippa voltou a deitá-la e empilhou sobre ela tudo o que conseguiu encontrar de cobertores na arca de madeira.

Pronto! disse ela com satisfação. Dentro d’uma hora venho ver como é qu’estás. E na te mexas!