Infelizmente, a evasão parecia difícil, senão impossível. A porta, baixa e áspera, com as suas dobradiças de ferro e a sua grande fechadura era impossível de forçar. Aliás, quando se abria podia ouvir-se o estalar dos ferrolhos exteriores. Portanto, era impossível passar para o lado de lá, a menos que quisesse defrontar o Mulherão e isso seria pura loucura: uma pessoa não se pode medir com uma montanha...
O respiradouro, que ela conseguiu atingir subindo para um escabelo, dava para um pátio interior, uma espécie de poço cego, mas que devia ter uma saída qualquer. Â vista que teve permitiu, no entanto, que a jovem constatasse que o seu quarto se encontrava no rés-do-chão, coisa de que duvidara antes, aliás, devido à pouca luz que se escoava pelo buraco de escoamento das águas. Simplesmente, para passar, seria preciso serrar, ou arrancar, pelo menos, uma das barras de ferro que impediam a passagem. Em todo o caso, Fiora abanou uma e depois outra das três barras e constatou que uma mexia um pouco. Mas o barulho dos ferrolhos fez-se ouvir e ela atirou-se para a cama para não ser surpreendida nas suas tentativas.
Pippa encontrou-a deitada e teve um largo sorriso:
Dir-se-ia que te tornaste razoável? Nesse caso, talvez nos entendamos. Pega lá, trago-te galinha de zafferand, pão branco e doce de ameixas! Amanhã terás chianti para te dar um pouco de cor e aquecer-t’um pouco o sangue...
A mulher colocou a escudela nos joelhos de Fiora e, para grande surpresa desta, atirou-lhe mesmo um guardanapo aquela raridade que se encontrava apenas nas casas mais refinadas! pelos ombros, acrescentando que era para evitar sujar os lençóis. Em seguida, a alcoviteira observou-a enquanto a jovem pegava elegantemente nos bocados
1 Açafrão
de carne com a ponta dos dedos, que mal tocavam no molho avermelhado:
Vê-se que foste bem-educada! comentou ela. Uma verdadeira princesa, que está à-vontade no mais belo dos palácios. É pena que na te tenham ensinado a fazer amor tão bem, mas, depois do negócio d’amanhã, que talvez sej’a muito agradável p’ra ti, ensino-t’a dar prazer a um homem, mesmo que ele na tenha vontade. Tenh’a certeza qu’és dotada...
Fiora fechou as portas da sua memória à recordação sempre ardente da sua noite de núpcias. Philippe fora um professor maravilhoso, mas ela não queria recordar-se daquilo ali. Aliás, ouviam-se uns gritos nas profundezas da casa e Pippa precipitou-se para fora do quarto para ir ver o que se passava, gritando que era impossível ter uns minutos de paz «neste calabouço». Mas, quando regressou alguns minutos mais tarde, segurava no seu punho implacável um conjunto de farrapos escuros, de onde partiam uns gemidos. A mulher atirou com tudo para o chão, perto do leito:
Encontraram ist’a rondar a casa há uns minutos. Sabes quem é, por acaso?
O monte de lenços agitou-se, abriu-se e apareceu o rosto aterrorizado de Khatoun. Da fronte corria-lhe um fio de sangue.
Fiora lançou um grito e, instantaneamente, viu-se de joelhos junto da jovem tártara, cujo rosto se iluminou.
Khatoun! disse ela. Que te fizeram?
A jovem quis tomá-la nos braços para a apoiar contra o seu ombro e enxugar-lhe o sangue que corria ainda, mas Pippa repeliu-a brutalmente para trás:
Na toques! Primeiro, respondes às perguntas! Quem é?
Chama-se Khatoun. O meu pai comprou a mãe dela, que era tártara, quando ainda estava grávida. Ela nasceu no palácio e é a minha companheira desde sempre.
Uma escrava, ha?
Sim, mas eu nunca a considerei como tal. Eu... eu gosto muito dela. É preciso tratar dela, vê-se bem que está ferida.
A culp’é dela! Lutava com’um gato furioso quando Beppo, o meu irmão mais novo, lhe pôs a mão em cima. Até o arranhou. Então, ele deu-lh’uma cacetada. Mas agora é preciso saber: que faz ela aqui?
Primeiro, trata dela exclamou Fiora. Vê-se muito bem que ela está quase a morrer!
Khatoun, com efeito, tentara levantar-se, mas as forças faltaram-lhe e voltou a cair no chão, ao mesmo tempo que o seu pequeno rosto ficava esverdeado e as suas narinas se dilatavam... Sem responder a Fiora, Pippa inclinou-se, pegou nela pelos braços e pousou-a em cima do leito, resmungando que os trapos com que ela estava vestida iam estragar os lençóis. Mas era, incontestavelmente, uma mulher eficaz: num abrir e fechar de olhos, sob o olhar inquieto de Fiora, lavou a ferida, besuntou-a com uma pomada que estancou o sangue e depois passeou sob o nariz da doente um frasco de sais que deviam ser particularmente vigorosos, porque Khatoun saiu do seu desfalecimento com um espirro.
Pronto! disse Pippa. Como vês, não está morta! E agora, vai ter que falar!...
Um pouco de paciência! indignou-se Fiora. Dá-lhe qualquer coisa de beber! Um pouco de vinho!
Mas, palavra de honra, ela agora dá-m’ordens? rugiu o Mulherão, que foi, mesmo assim, buscar um frasco de vinho, do qual deu a beber uma taça a Khatoun, que, apesar de parecer completamente extenuada, recuperou o ânimo. Então, contou como, a partir do dia seguinte ao funeral do seu senhor se deslocou, disfarçada de mendiga, às imediações do convento de Santa Lúcia. O seu instinto, agudo como o de um animal fiel, dizia-lhe que Fiora estava em perigo naquela «santa» casa. Ficara por ali, não se afastando senão para comprar a pouca alimentação que as poucas moedas atiradas pelos passantes lhe permitiam...
Na tiveste sarilhos com a confraria dos mendigos? observou Pippa. Espantas-m’um pouco: os lugares diante das igrejas e os conventos são lugares de escolha. Isso paga-se, geralmente...
Não vi ninguém disse Khatoun erguendo para a imensa mulher um olhar cheio de inocência. Talvez o mendigo habitual estivesse doente?
Pouco provável! Essa raça é sólida. Ou se está vivo, ou se está morto. Não há meias-medidas. Mas, continua a tua história!
Pouco mais havia que contar. Na segunda noite de sentinela, a pequena escrava vira a porta abrir-se para a noite escura. Uns homens mascarados tinham-se aproximado e recebido um grande fardo escuro, que um deles tinha carregado aos ombros. Partiram silenciosamente e Khatoun tinha-os seguido até àquela casa, onde os tinha visto entrar. Tinha a certeza, sem poder explicar porquê, que aquele fardo não continha outra coisa senão Fiora. Compreendeu que tinha razão quando o tumulto colérico da cidade lhe disse que o julgamento não teria lugar porque a acusada tinha fugido... Desde então, ficara certa de que Fiora se encontrava naquela casa, onde vira entrar os dois homens...
Com os olhos brilhantes de esperança, Fiora seguiu apaixonadamente o relato da jovem tártara, mas não ousou, por prudência, fazer a pergunta que lhe queimava os lábios. Foi Pippa que a fez, negligentemente, como se se tratasse de uma coisa sem importância, mas brincando ao mesmo tempo com o grande alfinete que acabava de retirar da sua coifa.
Como é possível na teres pedido ajuda? Não procuraste socorro? Khatoun baixou os olhos e as duas mulheres puderam ver umas lágrimas correndo lentamente pelas suas faces cor de marfim.
Eu regressei ao palácio para procurar ajuda, mas não pude aproximar-me. Havia soldados por todo o lado, retendo a multidão. Uma multidão... que gritava «À morte!... À morte a feiticeira!» E havia mais no interior: Vasculhavam tudo e... e pilhavam; Ouviam-se os móveis, que eles atiravam para o pátio, a quebrar... Foi... terrível! E eu já não sabia para onde ir... e quem procurar. Pensei em donna Chiara, mas o porteiro expulsou-me. Então, voltei para aqui para tentar... já não sei o quê.
Com um nó na garganta, Fiora escutara aquelas frases que lhe anunciavam a sua total ruína e o fim das suas esperanças. Não era desgosto o que ela sentia o desgosto, tão cruel pela morte do seu pai, nem sequer lhe tinham dado tempo para o sentir e ela sabia que ele voltaria à carga mais tarde era simples fúria, uma raiva impotente. Tinham-lhe tirado tudo, deixando-lhe apenas a honra e, dentro de algumas horas, nem isso existiria. Seria profanada, aviltada, irremediavelmente suja, atirada para a lama, da qual o bom Francesco Beltrami quisera preservar um bebé inocente... A jovem acabou por explodir: