E Lourenço?... Lourenço de Médicis, o senhor de Florença, que fazia ele enquanto me procuravam para me matar, enquanto pilhavam a minha casa... enquanto massacravam, sem dúvida, a minha velha Léonarde? Onde estava ele, o Magnífico, o Todo-Poderoso? No seu jardim da Badia, ou de Careggi? A ver florir os loureiros e compondo versos de louvor à beleza? Ou ainda a ler algum livro raro? O meu pai tinha alguns admiráveis... mas talvez ele os tenha levado para a sua própria biblioteca?
A jovem gritava, parecendo uma daquelas carpideiras antigas, ao mesmo tempo que umas lágrimas amargas lhe corriam dos olhos... Vivamente, Pippa fechou-lhe a boca com a sua grande mão:
Cala-te! Queres que nos enforquem? Há gente nesta casa. As raparigas estão a trabalhar e os clientes a chegar.
Que tens tu a temer? perguntou-lhe Fiora com amargura. Eu acabo de te dizer que os Médícis não são tão poderosos como isso...
De qualquer maneira, têm espiões por toda a parte. É graças a isso que são os mais fortes, a isso e ao ouro! Não têm o sangue mais azul do qu’eu e ele sabe-o bem, esse Lourenço, que casou c’uma princesa romena p’ra arranjar semente de príncipe. Vamos, acalma-te! Se te dá prazer, eu compreendo-te. Custa a engolir.
É o mínimo que se pode dizer.
D’acordo, mas tu- ainda na perdeste tudo. Resta-t’esse palminho de cara... e o corpo. Quando eu t’ensinar a servires-te dele, verás que podes fazer grandes coisas com ele. Em Roma farás uma fortuna e talvez consigas, um dia, vingar-te. Por agora, deita-t’e dorme! Quant’a esta...
Que lhe vais fazer? exclamou Fiora já na defensiva e rodeando Khatoun com os braços.
Estava a pensar em matá-la, porque só os mortos é que na falam, mas talvez tenha outra coisa melhor p’ra ela...
O quê?
P’ra já, vou-lhe tirar esses lenços todos p’ra ver o qu’está por baixo! Uma escrava tártara custa caro. Ela sabe fazer o quê?
Cantar, dançar e tocar alaúde... Mas, proíbo-te que a ponhas no mercado de escravos. Ela é minha e tenho muita afeição por ela. Se nos separares, não conseguirás nada de mim. Hei-de conseguir matar-me!
Sem responder, mas com um suspiro cansado, Pippa mandou Khatoun levantar-se e começou a despi-la. Parecia um grande macaco ruivo em vias de descascar uma noz fresca. Demasiado fatigada para perceber, Khatoun deixou-se ir, mas as suas pernas vacilaram e os seus olhos fecharam-se, a despeito dos esforços que fazia para os manter abertos. Sem que ela parecesse aperceber-se, o Mulherão submeteu-a ao mesmo exame que fizera antes a Fiora. Esta esperou impacientemente que ela terminasse, mas, subitamente, sobressaltou-se, não acreditando no que os seus olhos viam e os ouvidos ouviam: sob as mãos de Pippa, que deslizavam docemente pelo seu corpo, Khatoun gemia e torcia-se, agora bem acordada a despeito de os seus olhos, meio transtornados, se fecharem. A garota ronronava como uma gata sob aquilo que se podia chamar carícias. E, subitamente, deixou-se cair de joelhos afastados e as mãos agarradas aos seios, enquanto os dedos de Pippa procuravam a sua intimidade. O jovem corpo de marfim distendeu-se como um arco, ofegando como um animal ávido, caiu com um grito e contorceu-se num longo espasmo... Pippa, que se ajoelhara, levantou-se, como se o que acabava de acontecer fosse a coisa mais natural do mundo.
A mulher lançou a Fiora, espantada, um olhar malicioso:
Deve saber mais do que dançar e tocar alaúde, esta pequena! Nunca fizeste amor com ela?
Tu és louca? exclamou Fiora, indignada. O amor só se faz com um homem... e com um homem que se ama!
Bem, ainda tens muita coisa p’raprender! Podemos prestar grandes serviços entre mulheres, serviços bem agradáveis, que fazem esquecer a brutalidade dos homens. São raros aqueles que sabem dar prazer. A maior parte comporta-se como soldados numa cidade conquistada. Ao passo que outra mulher... Queres que te mostre?
Não, obrigada! disse Fiora que, agora, olhava com um certo desgosto para o corpo inerte de Khatoun, que passara sem transição da voluptuosidade para o sono. A jovem tinha a impressão de que a sua pequena escrava acabava de ser emporcalhada... Pippa desatou a rir, baixou-se, pegou em Khatoun sem esforço aparente e atirou com ela para cima do leito:
Não faças essa cara! O que acaba d’acontecer é natural, especialmente com uma rapariga da Ásia. Fica com ela esta noite! Amanhã vou pô-la a trabalhar. Por agora, está de tal modo arrebentada que nem se lembrará do qu’acaba d’acontecer...
A mulher já ia a sair quando se virou:
Já agora! Amanhã à noite, tu também terás de trabalhar! E pode não ter graça nenhuma. Mas eu ajudo-te!
Nessa noite, Fiora não conseguiu conciliar o sono. A casa, entregue à orgia, ressoava como um tambor, ressoando também na cabeça da jovem. Ela ouvia as canções dos bêbedos, os gritos, os risos e os estertores e tudo aquilo lhe metia nojo. Por volta das duas horas, grandes pancadas de pés foram dadas na sua porta, mas a fechadura era sólida e ninguém entrou. A jovem também ouviu injúrias e gemidos dolorosos e compreendeu o que Pippa quisera dizer quando falara na brutalidade dos homens... Virando-se para o outro lado, viu Khatoun a dormir profundamente e sentiu invadi-la uma grande piedade. Ao mesmo tempo, recriminou-se por tê-la desprezado por alguns instantes. Pobre pequeno ser, que acabava de lhe demonstrar uma grande devoção, que se entregara voluntariamente ao frio, à chuva, à fadiga, ao medo, à rua, à noite e ao perigo de maus encontros para tentar, ela que era tão fraca e tão pobre, arrancar a sua patroa a um destino terrível! A ideia de que a partir do dia seguinte o Mulherão iria fazê-la entrar no seu inferno, a entregaria aos brutos que ouvia rir e injuriar-se, aterrorizava-a. Temia mais aquilo do que o seu próprio destino, porque se sentia agora com uma força que nunca suspeitara possuir. O ódio e a cupidez de Hieronyma tinham-na arrancado ao seu mundo fácil e elegante para a atirarem às feras e agora sabia que, se queria viver, teria de combater com as armas que lhe viessem parar às mãos. Mais ainda, se queria saborear um dia o sabor da vingança que lhe apertava o coração como algumas plantas más, cujas espiras mortais sufocam lentamente as suas irmãs, sem outra defesa que não as mãos do jardineiro. Mas nenhum jardineiro benfazejo viria libertar o seu coração, feito para o amor e que, pouco a pouco, estava a secar... a menos que a água da ternura viesse em seu socorro. Mas o único capaz de fazer esse milagre não queria saber e nunca quereria...
O canto do galo trouxe o silêncio à casa de Pippa. Fiora ouviu afastar-se o último bêbedo. O homem massacrava com uma voz atrozmente falsa uma canção de que Fiora gostava:
Eu andava à procura de uma flor
E vós tendes tantas no vosso branco rosto...
Ao passar por aquela voz soluçante, o romance era praticamente irreconhecível. Era a imagem daquilo em que se transformara a vida de Fiora: uma caricatura, um pesadelo, um escárnio do qual não via, do fundo da cloaca em que caíra, como poderia sair... e em que estado! Pelo menos tinha, agora, na pessoa de Khatoun, uma companheira de miséria. De uma vez só, as distâncias tinham desaparecido admitindo que as houvesse! entre ela e a jovem escrava, que se transformara numa irmã mais frágil, talvez, e que iria ser necessário proteger, mas com a qual seria possível estabelecer um plano de fuga, visto que Khatoun, pelo menos, sabia onde era a casa de Pippa.