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Fiora só adormeceu com as primeiras luzes da madrugada, ao mesmo tempo que a casa ressoava com os roncos dos seus habitantes...

Um som de portas a bater e de água a correr acordou-a. Pippa, negligentemente vestida com uma espécie de roupão de seda azul-vivo, estava ocupada a deitar, na tina, o conteúdo das selhas de água que estavam diante da porta. Aparentemente, o lado estufa da estranha casa ia ter utilidade: Pippa preparava um banho.

Por entre as pálpebras semicerradas, Fiora observou-a. Descobriu que aquela mulher tinha a estrutura de um homem, à excepção dos dois seios de mármore branco que o traje descobria por instantes. Tinha uma musculatura nodosa, que lhe inchava os braços e os ombros, mas sem um grama de gordura e a pele, muito branca, parecia tão lisa como a de um bebé, salvo num dos ombros, onde uma feia cicatriz, vestígio de uma antiga facada, falava de uma existência onde o perigo tinha o seu lugar.

Quando achou que já tinha água suficiente, Pippa mergulhou nela o braço para controlar a temperatura, desapareceu por um instante e regressou com uma caixa, da qual tirou um punhado de qualquer coisa e atirou-a para dentro da tina. O odor familiar da resina de pinheiro e das flores do loureiro Léonarde, rendida aos hábitos florentinos, punha sempre aqueles perfumes nas lavagens para perfumar a roupa encheu o quarto. Mas não se tratava de uma barrela...

Sem mesmo se preocupar em ver se ela estava acordada, Pippa tirou Fiora da cama e mergulhou-a na água até aos ombros, não sem que esta protestasse:

Não era mais simples dizeres-me que me levantasse e entrasse no banho? perguntou ela.

Não é bem assim. Há pessoas que na gostam de se lavar. Assim, evito discussões.

Mas eu gosto de me lavar e Khatoun também. Em nossa casa há uma grande estufa. Eu tomava lá banho todos os dias!

Pippa fungou com um ar desconfiado:

Isso não é de mais? Um banho todos os dias deve gastar a pele!

Vês muito bem que não. E ouvi dizer que Zafolina, a famosa cortesã que é disputada pelos homens mais ricos da cidade, tomava, às vezes, dois!

Desta vez, Pippa ficou completamente siderada. Segundo a sua ética pessoal, era impensável que a filha de Francesco Beltrami pudesse saber que existiam cortesãs. Fiora explicou-lhe, então, que Zafolina era tão bem-educada, tão discreta, tão piedosa e tão generosa, que não era raro ser recebida nas melhores casas. Admiravam-lhe as toilettes, as jóias e gostavam de a ouvir falar, ou cantar. Não tinha nada a ver...

Com o que se passa aqui? completou Pippa enquanto ensaboava vigorosamente a jovem: Bem, sabes, é essa vida qu’hás-de ter se fizeres o qu’eu te digo. Simplesmente, há-de ser ’inda melhor, porque será em Roma e tu hás-de cantar p’ro Papa! Havemos de ser ricas com’a rainha do Sabat...

Do Sabá! rectificou maquinalmente Fiora, mas o Mulherão não a ouvia. Enquanto lavava meticulosamente os cabelos da sua nova pensionista, sonhava acordada, vendo-se já a dominar os negócios de uma Fiora coberta de ouro e jóias e com todo o Sacro Colégio a seus pés. Mas, para dizer a verdade, a jovem não a escutava.

Fiora reflectia enquanto saboreava aquele banho quente e perfumado, do qual tinha grande necessidade. Um prazer de que não desfrutava há muitos dias, porque era costume não ir aos banhos quando a morte passava por uma casa...

Depois do banho, no qual Khatoun a substituiu depois de ter recebido ordem para se desenvencilhar sozinha, Pippa envolveu Fiora num lençol e instalou-a de costas para o braseiro para que secasse os cabelos:

Vou mandar massajar-te e perfumar-te daqui a pouco! declarou ela abandonando o quarto para grande satisfação de Fiora, que se aproximou de imediato de Khatoun, ocupada a ensaboar-se com um cuidado maníaco.

Nunca te agradecerei o suficiente pelo que fizeste disse-lhe ela. Podes dizer-me, agora, onde estamos?

No bairro San Spirito, na outra margem do Arno. A casa fica por trás da de um mercador de velas, a meio de uma pequena ala que desemboca em frente do grande palácio inacabado...

O palácio dos Pitti? Aquele cuja construção foi abandonada?

É isso. Entra-se aqui por um corredor e não há nenhuma janela para a rua. Há é uma lanterna vermelha por cima da porta.

Por outras palavras, vai ser difícil sair daqui, senão impossível. Quem nos virá procurar aqui?

De qualquer maneira, há uma pessoa que sabe... Khatoun baixou a voz vários tons e agitou a água do banho para melhor a encobrir. Um velho mendigo que conheci perto do convento. Ele foi muito bom, muito generoso. A mulher tinha razão: é proibido mendigar sem autorização dos outros, mas ele deixou-me. Deu-me um pouco de protecção e estava comigo quando os homens te trouxeram para aqui...

Disseste-lhe porque te tinhas instalado junto de Santa Lúcia?

Disse.

E ele ajudou-te, mesmo assim?

Ajudou, mas depois aconselhou-me a voltar para casa. Mas eu não quis. Então, ele foi-se embora, dizendo-me que, se ficasse ali, ainda me prendiam... ”

Tristemente, Fiora voltou para o seu lugar junto do fogo. A ténue esperança que concebera evaporara-se como o mendigo na noite. Ele tivera piedade de Khatoun, mais nada! Basear uma esperança no interesse de um ser tão desprovido como um mendigo era pura loucura. Teria de tentar encontrar outra coisa. Mas o quê?

Quando Pippa regressou, lavou os cabelos de Khatoun, mandou-a sair da água, tirou a rolha da tina para a esvaziar e depois, virando-se para Fiora, fê-la estender-se em cima do leito para lhe untar o corpo com um óleo perfumado, enquanto, por sua vez, Khatoun se secava. Com o nariz franzido, Fiora cheirou o odor que se escapava das mãos do Mulherão.

Que perfume é esse? O que eu usava era feito de lírio-silvestre, verbena e um pouco de jasmim.

Isso deve cheirar bem, mas na deve valer grande coisa no amor. Isto é nardo e custa muito caro, p’ra qu’estejas p’rai a fazer caretas. Se souberes usá-lo, os homens ficam malucos...

Bruscamente, Fiora agarrou na mão de Pippa, que se aproximava do seu ventre.

Continua a ser... esta noite?

Qu’aquele que te quer te espera? Sim, mas não me perguntes o nome dele: não to direi. N’altura saberás...

E ela disse Fiora apontando com o queixo para a sua antiga escrava. Vais mesmo atirá-la para o inferno que eu ouvi a noite passada, dos bêbedos e dos brutos?

Na te preocupes! Vou dá-la a um que saberá apreciá-la. Uma coisinha como ela vale muito e eu posso arrancar umas massas. Além disso, ela gosta do amor...

Não tens medo que a reconheçam e que através dela venham até mim? As escravas tártaras são muito raras e a minha pode ser conhecida. Deixa-a comigo. Mais tarde, leva-la comigo para Roma. O cardeal Borgia é, certamente, suficientemente rico para a comprar, ou eu pago-ta quando tiver ganho bastante ouro...

A Fiora custava-lhe falar aquela linguagem de cortesã, mas, para salvar Khatoun de um destino terrível, teria negociado com o diabo em pessoa.

Ela na pode ficar contigo esta noite respondeu Pippa, massajando energicamente os ombros e o peito da sua pensionista. E depois, ela há-de passar uma boa noite. O cliente a quem a vou dar é um senhor muito generoso e n’é daqui. Portanto, n’é preciso ter medo...

Fiora compreendeu que não havia nada a fazer e calou-se, deixando Pippa prosseguir com a sua massagem. O seu corpo cheirava tão bem como a botica de Landucci quando ele recebia um carregamento de perfumes. Ao cabo de um momento a jovem perguntou com amargura:

E eu, também devo esperar o que tu chamas uma noite agradável? Pippa parou. Enxugando maquinalmente as mãos ao vestido, suspirou:

Não. Tu pareces-m’uma rapariga bastante corajosa e eu vou-te dizer a verdade e depois mais vale estar prevenida. Tu vais passar um mau momento porque... porqu’ele é meio louco. Mas eu estarei por perto... ou, pelo menos, não estarei longe, p’ra evitar o pior. Quanto a ti, terás de pensar no qu’eu te prometi... na tua futura fortuna!