O ar da manhã era leve, puro e transparente, com aquela bela luz irisada que anuncia um dia de sol, mas o coração de Fiora, se bem que livre do medo, permanecia pesado enquanto caminhava junto de Demétrios na poeira do caminho tantas vezes percorrido outrora ao trote do seu cavalo ou no alegre carrilhão das campainhas de uma mula. Lá em cima estava a sua casa, da qual podia ver o grande telhado trigueiro, a doce casa entre os loureiros, onde Philippe lhe tinha dado algumas horas de felicidade maravilhosa e a jovem pestanejou sob a luz, como uma ave nocturna projectada, subitamente, para a luz do Sol. As coisas já não tinham o mesmo rosto nem a mesma cor e Fiora via-se uma estranha, uma rainha deposta transformada numa mendiga no meio daquela bela região que ela amava com todas as fibras do seu corpo, com toda a ternura do seu coração e que não a reconhecia.
Demétrios, que a observava pelo canto do olho, ao vê-la tropeçar numa vala deixada pelas últimas chuvas, segurou-a pelo braço e não a largou mais:
A encosta é rude e o caminho parece-te amargo, Fiora Beltrami, porque caíste do alto e as tuas feridas ainda sangram, mas fica a saber que aquele que quer atingir o topo da montanha não pode abster-se de subir a encosta.
Crês que ainda pode existir um topo para mim? Estou cansada, Demétrios...
Já to disse: ainda sangras, mas as cicatrizes tornam a pele mais dura. Eu vou curar-te e poderás, então, ver de novo o horizonte. Descobrirás que terás vontade de... amar e ser amada.
Nunca! Nunca mais voltarei a amar! Há demasiada amargura no meu coração para que o amor possa entrar de novo nele, um dia. Tudo o que desejo, agora, é vingar o meu pai, a minha mãe e vingar-me a mim mesma. Pensa que me tiraram tudo, que a minha casa foi pilhada, devastada, que talvez tenham matado aquela que velou pela minha infância, a minha querida Léonarde, na qual mal ousava pensar naquela casa de onde tu me tiraste...
Posso assegurar-te que ninguém foi morto quando o palácio Beltrami foi invadido. Os criados que não fugiram, dispersaram-se.
Bernardino, o mendigo, informou-se. A tua Léonarde encontrou um refúgio.
Onde? Todas as portas se lhe devem ter fechado, até as daquela Colomba, a governanta da minha amiga Chiara Albizzi. A menos que... que tenha podido ir para casa da sobrinha dela, a Jeanette, que casou com um fazendeiro do Mugello! Oh! Se eu pudesse ter a certeza?
Eu hei-de encontrá-la, descansa! Quanto à vingança, é natural que penses nela.
Eu só penso nela! Mas já não tenho nada para me ajudar a persegui-la, nada senão estas duas mãos acrescentou ela com amargura, estendendo diante de si os seus dedos esbeltos que, com as unhas quebradas, pareciam incrivelmente frágeis para tão pesada tarefa.
Não és capaz de confiar em mim? As armas que te faltam, encontrá-las-emos juntos. Não percas a esperança! Eu sei que a estrada é longa e que te reserva muitas surpresas. Tenho muito que te ensinar...
Fiora olhou para o seu companheiro com curiosidade:
Tu és um homem estranho e não é a primeira vez que reparo nisso. Eu não esqueci a tua profecia, na noite do baile, no palácio Médicis...
Nem, espero, a promessa que te fiz, de te socorrer se precisasses?
Não a esqueci... mas não acreditava nela. Perdoa-me, porque acabas de me salvar de um destino bem pior do que a morte e nunca te poderei agradecer o suficiente. No entanto, confesso-te, metes-me um certo medo. Onde arranjaste tu esses poderes estranhos? Ontem, com um simples gesto, transformaste o Mulherão numa criada obediente e...
Chhh! Falaremos disso mais tarde. Nunca se sabe para onde o vento leva as palavras... Ficas apenas a saber o seguinte: podemos apoderar-nos facilmente do espírito de um ser quando ele está sob os efeitos de uma emoção...
Os dois prosseguiram o caminho em silêncio. Abandonando a estrada, Demétrios escolheu uma vereda íngreme entre muretes de pedra seca, que retinham a terra sob as vinhas e as oliveiras. O Sol subia no céu. Espalhava o seu calor primaveril pelas colinas salpicadas aqui e ali de grandes ciprestes negros. Empoleirado na folhagem prateada de uma velha oliveira, um melro começou a cantar. Fiora parou por um instante para o escutar e também para repousar. O suor perlava-lhe a fronte, o lábio superior e os pés, cobertos de poeira nas suas sandálias de corda, doíam-lhe:
Por que viemos por aqui? perguntou ela. Este caminho não é mais longo?
Pelo contrário, é mais curto para quem vai para minha casa. E depois... evita que passemos perto de uma casa que te deve ser duplamente querida? Não foi lá que te tornaste a esposa do conde de Selongey, o enviado do Temerário?
Fulminada por aquelas palavras, Fiora ergueu para o seu bizarro companheiro um olhar espantado e quase fez o sinal da cruz.
Para saber isso tens de ser o diabo em pessoa! murmurou ela. O médico grego desatou a rir e ela ficou vagamente escandalizada,
como se aquela manifestação humana estivesse deslocada numa personagem tão singular que não podia evitar achá-lo um pouco sulfuroso.
Não disse ele tranquilamente. Simplesmente, sei sempre o que preciso de saber. E agora retomemos, se não te importas, o nosso caminho! Precisamos os dois de roupas limpas, um pouco de repouso..., e um copo de vinho fresco!
CAPÍTULO IX
O MÉDICO DE BIZÂNCIO
A casa do médico grego erguia-se afastada do burgo de Fiesole, no extremo de uma fila dupla de altos ciprestes, que erguia em redor do visitante duas muralhas de verdura. Construída dois séculos antes, no tempo das lutas fratricidas entre os Guelfos e os Gibelinos, era um pequeno castelo que devia reforçar, em tempos, a defesa das muralhas da antiga cidade etrusca. Tinha umas paredes altas, avermelhadas, cujas antigas seteiras tinham por cima um grande telhado pouco inclinado. Uma torre quadrada, coberta também ela, acentuava o aspecto guerreiro da construção, mas os jardins que a rodeavam não ficavam a dever nada aos das mais ricas casas e suavizavam as suas velhas paredes, ao ponto de as tornar agradáveis.
Grandes pinheiros pára-sol, junto dos quais corria uma fonte preguiçosa, refrescavam um grande tanque quadrado e formavam um oásis resguardado, onde desabrochavam à-vontade sebes de loureiro-rosa e loureiro-comum! moitas de roseiras-bravas, grandes íris azuis e negras, tufos de lavanda, grandes peónias brancas, romãzeiras de flores púrpuras, limoeiros e laranjeiras plantados em grandes potes de barro vermelho e, em grandes canteiros rodeados de cordões de buxo, todas as plantas medicinais e todos os «simples» de que um médico podia ter necessidade. Havia também árvores frutíferas: cerejeiras, ameixeiras, pereiras e enfim, por trás de um ressalto da colina, um grande quadrado de legumes, unido pelas construções de uma herdade. Além disso, uma espécie de terraço, feito a partir de uma antiga parede, estendia-se por trás da casa à sombra de uma velha vinha ainda vigorosa. Tal era a casa que Demétrios devia à generosidade de Lourenço.
Como seu médico, possuo também um quarto no palácio da via Larga, assim como nas suas outras residências, mas ele sabe que eu gosto de viver livre e afastado. Foi por isso que me deu esta casa. Não é suficientemente grande, ou bela para excitar a cobiça e eu sinto-me bem e trabalho nela tranquilamente, ainda por cima porque as gentes daqui me arranjaram uma reputação de feiticeiro e mantêm-se afastadas. É verdade que no extremo do meu jardim passa o caminho que vai dar a Fontelucente...
Sobre aquele assunto, Fiora não precisava de explicações. Como todos os habitantes da região, a jovem sabia que as grutas de Fontelucente abrigavam uma comunidade de feiticeiros tão célebre como a de Norcia, perto de Spolete. Nunca Beltrami permitira que a Sua filha dirigisse os seus passeios naquela direcção perigosa. Portanto, não conhecia a casa de Demétrios, se bem que não fosse muito afastada da villa Beltrami.