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Da qual tu gostarias de ser o chefe! Reconheço que pareces feito para isso... mas Florença não precisa de um Grande Inquisidor. Frei Inácio, peço-te que deixes de te meter nos meus assuntos... e, melhor ainda, peço-te que regresses a Roma. Entregar-te-ei, para o Papa, uma carta, atestando, tanto o teu zelo, como as tuas capacidades.

Partirei quando a filha da iniquidade se sujeitar, tal como aceitou, ao juízo de Deus. Manda vasculhar a cidade rua por rua, casa por casa... sem esquecer as dos teus amigos... e o teu próprio palácio! Encontra-a e eu ficarei satisfeito... por agora. Só a Igreja sabe como tratar os seres desta espécie.

A ela... ou à sua fortuna?

O hábito que uso deveria poupar-me a esse género de insinuações. Que me importa a sua fortuna?

A ti, talvez não, mas interessa muito a um amigo próximo do nosso Santo Padre, um certo Francesco Pazzi.

; Eu não conheço esse homem.

Melhor para ti. Seja como for... no caso de o encontrares mais tarde, diz-lhe que a fortuna dos Beltrami nunca irá enriquecer os Pazzi. Quer encontremos Fiora, quer não!

Donna Hieronyma tem todos os direitos!

Donna Fiora foi adoptada oficialmente. Sob uma história falsa, talvez, mas é um ponto de direito que deve ser discutido e que talvez nunca venha a ser decidido. Entretanto, o banco Médicis assumirá a guarda e o desenvolvimento dessa fortuna. Sob o controlo da Senhoria, claro acrescentou Lourenço com um sorriso que um observador desprevenido talvez qualificasse de diabólico. Mas o rosto de frei Inácio era ainda menos agradável de contemplar. O seu rosto tornou-se mais amarelo, como se a bílis, deixando as suas vias naturais, se tivesse infiltrado no seu sangue. Os seus olhos faiscaram e erguendo para o céu o seu braço magro descoberto pela manga:

Não canses a paciência de Deus, Médicis! fulminou ele. Um dia...

A entrada em cena de Demétrios cortou-lhe a palavra. O grego, pensando que a sua chegada desembaraçaria, talvez, Lourenço do monge espanhol, decidira-se a abandonar o abrigo do seu Marsyas. O sorriso de Lourenço fê-lo pensar que tinha agido bem.

Disseram-me que me procuravas, senhor? Estás doente? Perdoa-me por te ter interrompido, santo homem. É só a pressa de trazer socorro a quem precisa. Dizias?

Frei Inácio deixara cair o braço ameaçador e metia agora as mãos nas mangas, mas os seus olhos tinham adquirido a dureza do granito ao olhar para o importuno. Com uma careta de desgosto, atirou:

Que um dia o raio se abata sobre este ninho de heréticos! Como ousas dirigir a palavra a um homem de Deus, feiticeiro» ajudante de Satanás? Para trás! A tua respiração empesta o ar...

Aquele que se sente incomodado é que deve retirar-se disse calmamente Lourenço. Boa noite, frei Inácio!

Formalmente despedido, o dominicano afastou-se sem saudar, mascando maldições por entre os dentes cerrados. Os dois homens observaram-no enquanto atravessava as arcadas, depois o cortile e finalmente o portão do palácio.

Ave agoirenta! grunhiu Demétrios. Que veio ele fazer aqui? Lourenço desatou a rir com um riso jovem e alegre mas tonitruante

e que fez um casal de rolas cinzentas e cor-de-rosa, que se tinham empoleirado no ombro de Judith, levantar voo:

Então, Demétrios? Sabes tão bem como eu. Pensas que não te vi, há bocado, quando te refugiaste por trás de Marsyas? Fizeste bem, aliás.

Abandonando por fim o apoio da estátua, o Magnífico reapertou em redor dos rins o cinto que retinha as pregas pesadas do seu longo traje de veludo escuro guarnecido com uma faixa de pele de marta e meteu o braço no do médico:

Vamos para dentro, meu amigo. Este monge estragou-me, por hoje, o encanto do jardim. Vamos para o meu studiolo...

Lado a lado, os dois homens subiram a íngreme escadaria que subia ao primeiro andar. Lourenço caminhava olhando para os pés e não dizia nada. O médico respeitou o seu silêncio, adivinhando, em parte, os pensamentos que se agitavam sob aquela grande fronte inteligente. Juntos, percorreram as salas de recepção atafulhadas de obras de arte e aquecidas com tapeçarias preciosas e tapetes cintilantes vindos dos longínquos mercados do Oriente e chegaram, por fim, a uma grande sala rodeada de armários de carvalho com sólidas dobradiças de ferro, dos quais alguns, abertos, deixavam ver que estavam repletos de livros encadernados a veludo ou couro de Espanha e ricamente decorados. Um homenzinho entre duas idades, vestido como um cónego e usando umas lunetas na ponta do nariz, trabalhava diante de um desses anuários, sentado a uma mesa embutida... Levantou os olhos à entrada dos dois homens, sorriu e quis levantar-se, mas a mão de Lourenço manteve-o sentado na cadeira:

Deixa-te estar, Marsile! É o amigo, mais do que o médico, que eu recebo e a tua sabedoria pode ser-nos de grande ajuda.

Está ao teu inteiro serviço disse o homenzinho e voltou a sentar-se... Marsile Ficino, filósofo platónico, médico e cónego da igreja de San Lorenzo tripla função da qual se desembaraçava com originalidade vivendo como um sibarita, deixando a medicina para os outros e pregando Platão do púlpito era um dos mais próximos comensais do Magnífico.

Este foi sentar-se a uma mesa em cima da qual brilhava um extraordinário vaso talhado numa enorme ametista e engastado com pérolas. Não dizia nada, mas Demétrios notou o ar com que ele procurou o apoio da mesa.

Tu sofres, senhor disse ele. Terás realmente necessidade do teu^médico, tu que és jovem e tão bem constituído? Nesse caso, perdoa o tempo que demorei em vir ao teu encontro!

A minha garganta doeu-me um pouco, mas já está melhor. Aliás, disseram-me que andavas numa missão santa por conta da minha mãe acrescentou ele com um sorriso trocista. Terás achado útil aproximar esse bálsamo destinado aos rins dolorosos dela do cinto da Virgem? Tu, que não crês em Deus nem no diabo? Espero que o meu tio Paolo, que é o grande preboste da catedral de Prato te tenha acolhido bem? Um descrente da tua qualidade!

Tinha dado ordens para que dessem essa resposta caso perguntasses por mim. Ignorava que criado encarregarias desse apelo. O recurso ao milagre é sempre bem visto pelo povo...

Bem pensado! Mas, se não estavas em Prato, onde estavas tu?

Trabalhava para a justiça, ao mesmo tempo que o meu criado seguia o assassino de Francesco Beltrami.

Lourenço teve um arrepio e endireitou-se, o olhar inflamado:

Encontraste-o?

Encontrei. É Marino Betti, o intendente de Beltrami, que o traiu pelos bonitos olhos da dama Hieronyma. Aliás, eu já desconfiava...

Tens provas?

Não, mas tenho a certeza absoluta...

E Demétrios contou o que se passara na taberna da margem do rio.

Ele não o matou por achar que não era a ele que cabia fazer justiça acrescentou ele.

Sem provas, a Senhoria nunca aceitará mandá-lo prender. Ficou muito satisfeita por poder entregar o palácio Beltrami à pilhagem dos seus esbirros e, se eu não estivesse lá, já teria posto a mão na herança fabulosa... Cada um reclama a sua parte dos lucros.

Esteban não pensava nessa justiça, pensava na que a filha da vítima tem o direito de exercer!

Fiora? perguntou Lourenço com um encolher de ombros. Seria preciso saber o que lhe aconteceu! Desde esta manhã que correm os boatos mais contraditórios. Diz-se que fugiu, o que me espantaria muito. Agora fala-se de rapto e há pouco recebi a visita da jovem Chiara Albizzi. Reclamava justiça para a sua amiga e ainda gritava mais do que o monge espanhol. Chegou mesmo a dizer que, segundo ela, Fiora Beltrami teria sido assassinada, tal como o pai.

Uma amiga fiel suspirou Demétrios que presente dos deuses! Isso supõe uma certa coragem, quando uma cidade inteira se transforma numa matilha sedenta de sangue lançada na pista de uma pobre corça.